sábado, 26 de setembro de 2009

O som do deserto

“Fechem os olhos”, disse ele, “e escutem o som do deserto.” Sentado na duna não foi difícil. Só tive de, imagine-se, fechar os olhos e ouvir. Ao começo um ligeiro assobio ecoava no meu ouvido. Era o som de 30 anos passados continuamente a ouvir escapes, gente, música, martelos-pneumáticos, gritos, televisão, aviões, cães, luzes, telemóveis, discotecas, conversas sem nexo, computadores, guitarras, paredes, calçadas, ruas e estradas, fábricas, campos e cidades, muito ruído, demasiado, todo junto, misturado agora num distante assobio. Aos poucos foi desaparecendo. O barulho do silêncio abafou o ruído de milénios de civilização e deixou tudo envolto numa calma imensa e no suave vento que soprava. Senti que o meu cérebro também se desligava e tudo o resto deixava de existir. Nem antes nem depois, nada, apenas aquele momento que durou um segundo mas me soube a séculos de descanso. “Vamos”. Acabou. O silêncio desapareceu à medida que o grupo começou a descer em corrida a duna, substituído por gargalhadas de criança que também os adultos soltaram. Mas no final de contas o silêncio continuará aqui neste deserto e dentro de cada um de nós, só temos de querer escuta-lo.


San Pedro de Atacama, Chile, Julho 2009







Um último assado

Sigo o nariz que me leva pela casa. Vem de cima o cheiro, subo as escadas. O fumo arrasta os meus pés que quase planam sobre os ladrilhos, fazendo-me voar baixinho de olhos fechados. Paro apenas quando sinto o calor, sabendo que as brasas estão destinadas a carnes outras que não as minhas. Abro os olhos e vejo entre a bruma não um qualquer Rei Dom Sebastião mas apenas e só mais um festim carnal desses que são tão comuns aqui. Na incerteza se são duas ou três as vacas despejadas sobre a grelha e as brasas, apenas reconforto mais este amigo que trata de cozinhar dando-lhe um sorriso meu de aprovação. Sento-me. Fecho os olhos de novo, sinto-me recuar os quase quatro meses que passaram desde que entrei neste país chamado Argentina. Sinto de novo a admiração do início, mais por obra da natureza feita de água que partilha com o seu irmão Brasil que pela primeira impressão da terra. Lembro depois a cidade capital onde me perdi pelas ruas para me encontrar num tango. Tango esse cantado mais tarde e entre amigos enquanto olhava um lago perdido nas montanhas, onde cheguei depois de percorrer a aridez de um sul vasto que me levou a esse lago. Sul, imensidão interminável que me navegou a caminho de um fim do mundo imaginário e de volta dele. Lembro a saudade de voltar ao sair do país, a alegria das várias reentradas nesta minha casa emprestada. Lembro ainda estes últimos dias, entre montanhas e vales, descobrindo o efeito dessa estranha droga chamada muita altitude e pouco oxigénio. Talvez seja ela que me tenha feito ver lagos de sal, montanhas muitas, profundos desfiladeiros, arco-íris de pedra, uma natureza vasta, estranha e de uma beleza difícil de descrever. Lembro em cada um destes lugares gente, muita, distinta, que viajará comigo aonde eu for. Mas o cheiro intenso faz-me despertar deste transe, a carne já está debaixo do meu nariz. Um último assado desce levado por vinho pela minha boca e esófago, para me deixar na despedida este gosto bom de estar aqui e me lembrar para sempre que tenho de voltar.

Salta, Argentina, Julho 2009












Sinto

Sinto a terra, o chão, o cheiro a seco, a ervas que desconheço. Sinto o céu que me observa, reflectido tenuemente na pouca água que corre lá ao longe, no fundo, nessa serpente amarela que mal se vê. Sinto o vento quente e frio, o alcatrão e a areia, sinto o ar que respiro e o sol que me queima. Sinto o abraço amigo de um desconhecido que me fala apenas para me dizer olá. Sinto o som do nada, da imensidão, do vazio cheio de tudo o que me envolve e sufoca. Sinto, sinto, sinto. Sinto até não poder mais não sentir, até ficar inconsciente de tanto sentir. Sinto com os meus seis sentidos, como se fossem oito, dez, um só. Fecho os olhos e respiro. O mundo podia acabar aqui e agora, não daria por nada.

Desfiladeiro de Cafayate, Argentina, Julho 2009







quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Um lugar


O que define um lugar? Coisas? Objectos? Luz? Paredes? Sol? Escuridão? Sons? Cheiros? Comidas? Sabores? Um cão que cruza a estrada entre os automóveis muitos? Uma garrafa de vinho sobre a mesa entre empadas que se comem? Igrejas, muitas, construídas há muito muito tempo com muito sacrifício de uns e para a glória esquecida de poucos? Uma rua cheia de flores e de cores e de lojas e de gente? Gente, isso mesmo, gente, isso define um lugar. Cheguei e vi uma casa branca, nem sabia bem o que era. "Entremos", disseram-me. Assim fiz. Entramos todos, e o que vi dentro nada tinha que ver com o de fora. De tudo tem esse lugar, Un Lugar, onde há discos, pratos, bicicletas, manequins, bonecos outros, luzes poucas, mesas muitas, música, roupas velhas, luzes poucas, gente, conversa, gente, sorrisos, gente... Amigos. Um lugar é apenas um lugar, o que faz dele único é quem nele encontramos.

Córdoba, Argentina, Julho 2009

Volta ao tinto em bicicleta

Mal chegamos salto logo para cima da bicicleta. Os meus companheiros não fazem ideia de que para mim isto não é um passeio mas que, como de cada vez que me ponho atrás do guiador, me estou a preparar para uma corrida. Ah ah! O tour dos vinhos de Mendoza transforma-se dentro das minhas pernas em Tour de France, Giro de Italia e Volta a Portugal. Partimos, tomo logo a cabeça do pelotão e dito o ritmo. Não quero ser surpreendido por fugas, tenho de estar atento a qualquer movimentação neste pelotão de 7. No meio disto olho para trás para controlar a distância e ver as caras dos meus competidores e, de repente, começa a soar uma música assobiada que conheço desde há muito. Como que por magia em vez de um qualquer Armstrong ou Agostinho sinto-me antes um Piranha de um Verão Azul, neste caso seguido pelos amigos ao contrário do que era costume nesse Sul de Espanha televisivo. O coração acalma, as pernas também, começo a olhar à volta e a desfrutar a paisagem e o vento que bate leve na minha cara. Adega número 1, começa a visita, assim se faz, assim se guarda, assim se prova, e o pouco que sobrava de Indurain em mim transforma-se à medida que Baco se vai apoderando de mim e inebriando este tour. 'Bodega' 2, mais um Malbec, 'Bodega' 3, um Torrontez, 'Bodega' 4, Induquem? Piranha, agora sim, pedalando sem pressa, mas sem gelado, assobiando na minha cabeça aquela música enquanto a roda segue, mais ou menos direita, a caminho de mais uma 'Bodega'...

Chacras de Coria - Mendoza, Argentina, Julho 2009

p.s: para os mais esquecidos, ou para quem desconhece essa jóia da TV Espanhola dos 80s, aqui vai o link para o vídeo da introdução:
http://www.youtube.com/watch?v=epgyu_2QieE