quarta-feira, 19 de agosto de 2009

As janelas de Neruda

Pablo Neurda, o grande poeta Chileno, grande escritor da literatura mundial... Neruda um poeta... Até parece! Eu também pensava isso, inocente que era, mas agora que vi onde viveu sei que não era um poeta, muito menos um escritor. Era talvez uma mão, uma mão gigante, uma caneta humana que escrevia sem parar. Agora que vi, senti, cheirei, ouvi, provei as janelas onde viveu sei que Neruda não era um poeta mas sim um tradutor, um mero e simples escrivão desse mar imenso, das cores em forma de casa que se amontoam nas colinas, das montanhas que ao longe as contemplam, dos cheiros a peixe fresco e pão quente quem sabe, do céu azul e dos pássaros que nele voam, das gentes que caminham escondidas nas ruas inclinadas desta espécie de Lisboa Chilena chamada Valparaiso, que como a nossa abraça de cima a água onde os barcos ondulam pequeninos. Era um veículo, como um médium, um ser por onde escorriam ao papel as palavras que lhe entravam pelos olhos, pelo nariz, por cada poro, por cada onda de mar revolto batendo fortemente nas rochas, por cada pôr-do-sol que via do seu barco estático encalhado na sua Isla Negra, por cada concha por si recolhida, pela boca, por todo o lado. Neruda podia até ser um preguiçoso se quisesse, ele acordava dentro de um quadro pintado por divinos seres, nada tendo que fazer, porque entrava pela sua cama adentro todo o mundo num piscar de olhos, numa poesia já feita e acabada. Uma mão era! Pablo Neruda um poeta... Neruda não era um poeta, era um poema, o poema das janelas em que viveu...

Valparaiso/Isla Negra, Chile, Junho 2009









segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Um amigo


Que vontade de ver o mar... Há já demasiado tempo que não o ouço, que não sinto o seu cheiro salgado, que não espremo a areia molhada nas minhas mãos, que não olho o seu horizonte flutuante. Nunca posso estar demasiado tempo longe do mar e já lá vai mais de um mês... Mas agora já quase que o sinto. Já deixei Valdivia há um bom bocado, esta relíquia rodoviária que me carrega ronca há bastante tempo, devemos estar a chegar à praia... Parou. Desço. Lá está ele. Paro na falésia envolto num cheiro intenso a maresia e ouço apenas as ondas que rebentam fortemente contra as muitas rochas desta praia, pequena baía recortada e, hoje, cinzenta. O vento sopra virilmente, trazendo pequenos salpicos que me refrescam o coração saudoso de Portugal. Desço até à areia. Um amigo vê-me ao longe, aproxima-se aos poucos, curioso, olhando-me, questionando-me, querendo saber quem sou eu, este que invade a sua paria deserta. Não me quer mal, nem tão pouco fora da praia, antes pára ao meu lado e olha o mar comigo. Ele também gosta de olhar e sentir o mar, de sentir a areia molhada, de estar aqui a ouvir Neptuno brincar com as rochas. Eis que passa um grupo de gaivotas, ele sai como louco, disparado, saltando, querendo alcança-las sem conseguir. Corro também com ele, porque não, afinal a praia é apenas nossa, vazia de gente mas cheia de mar. Paro, ele segue. Volta, chega-se ao pé de mim para mais uma vez me olhar e parar ao meu lado. E desta vez decido eu correr, saio disparado e ele segue-me, salta agora atrás de mim, para me alcançar com mais sucesso que às gaivotas, já que eu apenas voo nas asas do vento e das ondas. Paro, é hora de voltar. Ele pára também, olha para mim, eu para ele. Trocamos umas poucas palavras, volto-me, e começo a subir a rampa. Ele olha para mim, fita o mar, as gaivotas passam e ele sai a correr de novo... Subo. Um amigo, mais um que deixo no caminho, que fica na minha memória como eu na dele certamente. E seguiremos os nossos caminhos, cada um o seu, felizes por nos ter encontrado e mais ricos por termos vivido um breve instante juntos. Lá de cima olho uma última vez o mar e vejo-o na areia, feliz no seu reino, enquanto me olha uma última vez também, abanando o rabo. Era um cão e eu um homem, poderia ser ao contrário, mas que importa o que somos... O que importa foi que estivemos a olhar o mar, sem esperar nada um do outro, apenas aproveitando a praia, partilhando um momento juntos, simplesmente vivendo. E não era bom que fosse sempre assim? Temos muito a aprender com os animais...

Praia de Niebla - Valdivia, Chile, Junho 2009

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

1004

Vivo num postal. Os cantos da minha existência são delimitados pelas margens não de um qualquer pedaço de cartão mas pelas margens do lago que me preenche o olhar. O sol cai e levanta-se de novo, neste postal dinâmico e em constante mutação, reflectindo-se no espelho imenso de uma água fria e cristalina, ora calma ora revoltosa, como um mar em miniatura, um qualquer oceano encerrado entre montanhas do qual tenho uma visão completa, total, como um gigante que observa calmamente o mundo. O postal mexe-se, adormece, desperta constantemente no mesmo lugar, enquanto tudo em seu redor se move. Esta imagem como que parada encerra em si imensas pessoas, que, como formigas, se movem muito depressa apesar de passarem lentamente por aqui, ilusão óptica causada pela velocidade lenta e pausada a que o tempo se move dentro deste postal, o que faz com que tudo o resto pareça despropositadamente rápido. Sinto-me bem, como vendo um filme que eu dirijo, um filme que passa pausadamente neste postal ilustrado de uma terra que não sendo a minha jamais deixará de me pertencer. Dirijo um filme como se de um realizador me tratasse, mas não passo de um realizador de acontecimentos aleatórios que se passam ao meu redor e a cujos destinos sou completamente alheio. Ainda assim sinto-me como sentado numa cadeira, coordenando os movimentos dos que vêm e vão, chegando e partindo, sem nunca se aperceberem que chegada e partida não passam de um movimento contínuo, perpétuo, uma constante viagem em que partida e chegada não passam de ilusões criadas, equivalentes à ilusão da memória e do futuro, esse ideal projectado do que nunca será. Vivo num postal, postal ilustrado de cores, de sons, de maravilhosos momentos, de gente, de amizades, de sabores diversos, de lugares que aqui estão e não pertencem aqui mas a uma velha Europa que ficou do outro lado do Oceano. Vivo num postal que tem um mundo virado de cabeça para baixo, ou que tem o mundo direito num planeta todo ele voltado ao contrário. Vivo. O postal segue aqui, preso nesta liberdade imensa que transmite. Eu não me prendo, sigo, livre, também preso a este lugar, mas movendo-me de novo, preenchido pela liberdade imensa que me dá estar aqui. Volto um dia, e cada dia, ainda que partindo não mais daqui vou sair.

Hostel 1004 - San Carlos de Bariloche, Argentina, Junho 2009

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Gelo, muito gelo...


Devia ter ouvido o guia... Ele disse especificamente para não provar o glaciar! Gelo, frio, língua, molhado... Teimoso como sou encostei a língua e agora aqui estou, colado ao glaciar, pendurado pela língua e enregelado... Também ninguém me mandou voar tão perto, não me chegava ver o glaciar de longe? Agora esta montanha viva de água congelada que range e desce vagarosamente empurra-me a mim também, levando-me consigo ao ritmo de milénios para a margem onde um dia irá encostar. Olho o céu azul e branco, para não conhecer a vertigem da distância que me separa da água que, pequenina, me espera debaixo dos meus pés. De quando em vez sinto a vibração que antecede o ruído ensurdecedor do gelo que se desprende, caindo desamparado lá em baixo. Mas não tenho medo, antes espero pacientemente a minha vez, dependurado pela língua, fechando os olhos para me sentir parte desta massa que me gela e me fascina. E, de repente... Eis que sinto a vibração perto de mim, ouço o ruído e lá vou eu, caindo desamparado, como em câmara lenta, até mergulhar na fria água. Tive sorte, afinal de contas podia ter demorado mais... Agora é só deixar que a água me navegue preguiçosamente lago abaixo e esperar que o sol derreta o gelo para ter a minha língua de volta. E tudo isto para nada, é que no final de contas o glaciar sabe, imagine-se, a gelo...

Glaciar Perito Moreno - El Calafate, Argentina, Maio 2009