domingo, 6 de novembro de 2011

Destino


Segui o meu destino. A estrada há muito que chamava por mim, clamando pelo meu regresso. Dizia baixinho que sentia falta dos meus pés a percorrê-la, do meu suor a cair lento debaixo do sol quente e do peso da mochila, do meu olhar curioso pousado sobre o horizonte que ela vai desenhando ao longe, indiferente, num acaso. Eu também sentia falta dela, do crepitar da gravilha e dos grãos de areia debaixo dos meus pés, do quente alcatrão a derreter levemente à minha passagem, dos quilómetros que passam a inebriar o meu nariz de cheiros que não sei, do acaso a brincar com o destino enquanto desenrola o meu caminho aos poucos, sem pressa. No entanto foi o mar que me levou. A estrada ficou para mais tarde, vencida pela imensidão magnética do oceano que me ondulará, preguiçosamente, carregando-me  através da vastidão de água que levou os Portugueses de outrora a destinos desconhecidos, como esse que irei descobrindo aos poucos, a oeste. Sigo, parto de Lisboa levado pelo mar, viajando novamente, cumprindo cada dia o meu destino.

Lisboa, Portugal, 13 de Outubro de 2011

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Uma vez mais o norte


Enceto o caminho de casa, que uma vez mais me leva ao norte, como se fosse esse sempre e afinal o meu destino. Atraído por esse magnetismo polar que me faz uma e outra vez regressar a casa, percorro mais quilómetros de alcatrão negro que consumo como um adito incondicional, devorador de caminhos e direcções que teimo em fazer meus numa viagem constante, infindável. Sigo a caminho de Portugal, e acabo por o encontrar antes do tempo, numa 'Cidade Portuguesa’ que não é mais que uma saudade perdida que encontro sem remorso. Vagueio por estas ruas de outrora, mas rapidamente volto para fora da muralha em busca do que me trouxe aqui afinal, a gente que me estranha com o olhar mas me acolhe, quem sabe mais que em outras paragens já que desabituada do ocasional viajante, esse estranho que aqui não faz viver as gentes. El Jadida rapidamente fica para trás, a voracidade da minha viagem é já grande, volto com data mais ou menos marcada e o tempo para vaguear começa a escassear. Talvez por isso passe ao de leve pela gigantesca Casablanca, que me repele enquanto me atrai no seu cosmopolitismo. Vagueando nada encontro, apenas a vontade de seguir mais além, de me aproximar desse estreito que nos afasta desta terra, esse que me vai trazer de volta ao ‘meu mundo'. Faço no entanto uma última paragem antes de atravessar, um último retiro no azul suspenso nas montanhas de uma Chefchaouen que acaba por me fazer viajar de novo, devagar, na preguiça de subir e descer as suas ruas, de conhecer mais irmãos de destino, de apenas e tão somente descansar da corrida dos últimos dias. Mas o calendário trata de me fazer mover de novo, seguindo para a beira do estreito, para essa fronteira da ilusão de muitos, esse canal de tantas guerras, tantas viagens, tantos sonhos de séculos que eu observo de longe, contemplativo, questionando tantas coisas, tantas certezas, tanto mar, tanta fronteira, tanta gente que me envolve na Tanger que borbulha de vida à minha volta e me vende tudo o que não quero, porque o que quero não se vende, vive-se, e o que vivo não se vende tão pouco, saboreia-se. Já sabe a fim de viagem, e esse doce-amargo sabor faz-me nostálgico, de aqui e de casa, perdido num limbo que não existe, como este canal, ilusão feita diferença, divisão feita de água e de estupidez, linha imaginária onde tantos se tentam equilibrar e onde eu mesmo vagueio hoje, enquanto espero a boleia de volta ao meu lado do mundo. Com um passo atravesso o canal, ainda que ele não me queira deixar passar, parecendo querer-me prender a África, este continente original onde me encontro comigo, onde me revigoro, onde me sinto ao mesmo tempo enojado com tanta diferença, tanto erro do passado, tanto engano do presente, herança de uma história que não me deixa esquecer. As ondas que me parecem afundar neste canal querem mostrar que não é fácil a travessia, que nunca foi fácil passar esta fronteira, que eu como tantos devo pagar um preço, ainda que apenas um enjoo, ainda que apenas um pensamento, sortudo que sou de o não pagar com a vida como tantos que apenas querem ter o direito a sonhar, como eu, que sonho uma vida que não existe e a faço real a cada pequeno passo que sou, que tenho a sorte de poder ser. Esta liberdade que encontro queria dá-la a todos, que fosse de todos, mas o meu poder é pouco, apenas me sinto capaz de desenrolar a minha própria estrada, essa que já do lado de cá me faz adormecer num caminho que termina onde tudo começou, num caminho conhecido que calcorreio e em que a mochila já não pesa, porque a minha cama ali tão perto, porque um aconchego abraçado à distância de um sorriso, porque voltar a casa é também parte da viagem. Mas sei no fundo que já não sou daqui, que sou de lado nenhum, que a estrada é a minha morada, ainda que um dia a não corra, ainda que um dia as forças me falhem e tenha de viajar apenas nas memórias, minhas ou de outros. Não sou de lado nenhum, mas todo o mundo é meu e não descansarei enquanto houver um palmo de estrada para vencer, uma etapa nova para correr, um trilho de desconhecido para desvendar, um sonho novo para sonhar real. Pararei uns dias, mas consciente que o descanso é apenas o princípio, o começo de um dia que mais além me fará de novo viajar, seja qual for a direcção, seja qual for o destino.

Algures entre o Estreito de Gibraltar e Loulé, Dezembro 2010









quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Encontrei uma janela por onde o vento sopra poemas



Encontrei uma janela por onde o vento sopra poemas, trazidos do mar numa brisa salgada que me salpica de palavras. Desconheço de onde vêm, só sei que vêm, muitos, soprados desse longínquo mar, ainda que fronteiro, esse que nos trouxe a nós, povo Luso, para erguer aqui um dia esta janela por onde hoje os poemas entram ao ritmo de fortes rajadas e sonhos de aqui e de outrora. São simples poemas, sonhos de viagens, de longas jornadas caminhadas ou balançadas nas ondas que nos empurraram, que nos empurram, que me empurram a mim também e repetidamente me levam a outras paragens atraído pelo doce canto de uma curiosa sereia chamada viagem. Sentado neste forte, qual pescador, apenas abro as páginas ao vento para apanhar os poemas, prendê-los nesta rede de papel em letras que escrevo, que gatafunho muito rápido para os não perder, inutilmente, já que nem um batalhão de poetas os conseguiria agarra a todos, demasiados, voando por sobre a minha cabeça para se estatelar nas janelas das brancas casas que povoam este lugar, no azul dos barcos que uma e outra vez saem do porto para tão somente poder regressar, no canto imenso das gaivotas, nuvem em constante vai e vem nos céus desta terra que um dia deixámos aqui perdida para ser várias vezes encontrada, reencontrada, perdida de novo apenas na esperança de a poder reencontrar... Janela, por onde o vento sopra sonhos de uma interminável viagem, promessa de um mundo novo de sonhos, estranho néctar que me inebria e me faz adicto a este lugar de onde não consigo sair, preso às ruas que aos poucos me vão conhecendo, às gentes com quem me vou confundindo, às rochas onde o mar chega revolto, à baía onde o mar se faz calmo, ao sol que todos os dias se põe, como num outro qualquer lugar, mas que aqui uma e outra e outra vez me prende como ao primeiro ocaso, apaixonando na lenta carícia do sol que se afunda no mar, esse lugar-comum quase óbvio, repetitivo, banal até, mas que aqui se torna único cada dia, apaixonante, atormentadoramente belo. Encontrei uma janela por onde o vento sopra poemas, que não sei de onde vêm, nem para onde vão, mas também não me interessa, não quero saber, apenas abro as páginas, os olhos, o nariz, e respiro, respiro muito, deixando-me encher de um ar novo e sentindo na pele os dias que passam por mim, devagarinho, esquecido eu também, como esta velha janela, pendurado sobre este mar que contemplo preguiçoso à espera do dia que me leve de volta.

Um amigo

Vou fazer-te palavras, amigo, preencher de letras cada ruga do teu rosto, esse que olha o horizonte vago como um marinheiro de fito perdido nas marés, esperando infinitamente por um barco que chegue para te levar mas que nunca chegará. Vou fazer-te palavras, amigo, encher de conversas estes nossos silêncios, conversas sem fim em que as nossas palavras não se perderam na tradução que nunca existiu, em que te compreendi melhor que muitos que falam sem sentido, perdidos na ilusão de que enchendo o mundo de palavras preenchem o vazio que trazem consigo. Não, não foram precisos dicionários elaborados, tradutores letrados, ou uma qualquer estranha magia que nos fizesse entender o ininteligível e aprender num segundo o que muitos não aprendem numa vida inteira. Não, não foram precisas palavras para te entender, apenas um sorriso encoberto, esse que trazes contigo, amigo, esse que mostras a poucos, mas que mostras com o coração, esse mesmo coração que repetidamente tocas com a tua mão trabalhada pelo tempo, pela vida que claramente te foi dura, que dura e sobrevive espelhada no sorriso sem fim que nos ofereces sem nada esperar mais que um simples abraço amigo, como tu, que levo daqui na lembrança desta terra que és tu também, memória deste estranho país que se me vai entranhar mais do que penso, desta terra que sei que vou recordar quando me perder por outros caminhos e sentir falta de uma casa, amigo, esta que tenho aqui também porque te encontrei a ti. Vou fazer-te palavras, amigo, ainda que elas não tenham feito falta para que hoje te possa chamar assim, de amigo.

(em homenagem ao Ahmed, incansável porteiro do Hostel El Pacha, pessoa simples, melhor cozinheiro de Essaouira, e acima de tudo um amigo)



Essaouira, Marrocos, Novembro/Dezembro 2010































quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Pintura de Dalí



Estou deitado numa pintura de Dalí. Lá dentro já todos dormem, mas eu fiquei acordado, transformado em insónia pelo barulho intenso das estrelas que me arrastou cá para fora, para este quarto coroado por elas, imenso, e meu, só meu, tão grande e só meu... Deitado à porta da tenda toco com os dedos no céu levemente iluminado de um branco fosco amarelado, reflexo da lua que baixa no horizonte, essa que ilumina de sombras a surreal pintura de tons de azul acinzentado onde um qualquer Dalí perdeu o pincel. Vagueando por entre as dunas e montanhas que compõem o horizonte, o pincel faz passar diante de mim estranhos animais de longuíssimas pernas que, na falta de elefantes, são camelos cambaleantes e preguiçosos que me balançam com o olhar e a memória, fazendo o meu corpo parado sentir de novo os solavancos do caminho. De um lado e outro o pincel decora brancas tendas que ressonam suavemente, enquanto a meio faz surgir uma ténue luz avermelhada, memória da fogueira onde Tuaregues dançaram loucamente, como eu, ao som da sua ritmada e alegre batida, filha do intenso orgulho desta gente em nos acolher na sua casa, esta enorme casa de areia que é minha agora também. Lá dentro já todos dormem, mas eu aqui, sozinho, nesta casa que agora é minha, só minha, ainda que por uma noite, ainda que por um instante, ainda que apenas na recordação desta pintura que Dalí perdeu um dia no deserto e que eu tive a sorte de encontrar.

Algures no deserto - Zagora, Marrocos, Outubro 2010