quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Pintura de Dalí



Estou deitado numa pintura de Dalí. Lá dentro já todos dormem, mas eu fiquei acordado, transformado em insónia pelo barulho intenso das estrelas que me arrastou cá para fora, para este quarto coroado por elas, imenso, e meu, só meu, tão grande e só meu... Deitado à porta da tenda toco com os dedos no céu levemente iluminado de um branco fosco amarelado, reflexo da lua que baixa no horizonte, essa que ilumina de sombras a surreal pintura de tons de azul acinzentado onde um qualquer Dalí perdeu o pincel. Vagueando por entre as dunas e montanhas que compõem o horizonte, o pincel faz passar diante de mim estranhos animais de longuíssimas pernas que, na falta de elefantes, são camelos cambaleantes e preguiçosos que me balançam com o olhar e a memória, fazendo o meu corpo parado sentir de novo os solavancos do caminho. De um lado e outro o pincel decora brancas tendas que ressonam suavemente, enquanto a meio faz surgir uma ténue luz avermelhada, memória da fogueira onde Tuaregues dançaram loucamente, como eu, ao som da sua ritmada e alegre batida, filha do intenso orgulho desta gente em nos acolher na sua casa, esta enorme casa de areia que é minha agora também. Lá dentro já todos dormem, mas eu aqui, sozinho, nesta casa que agora é minha, só minha, ainda que por uma noite, ainda que por um instante, ainda que apenas na recordação desta pintura que Dalí perdeu um dia no deserto e que eu tive a sorte de encontrar.

Algures no deserto - Zagora, Marrocos, Outubro 2010