domingo, 17 de janeiro de 2010

Lá mais à frente, a norte


Voltei à estrada. Sinto debaixo da pele uma comichão estranha que me faz mover de um lado para o outro, irrequieto, a caminho do norte, e do sul, dos dois ao mesmo tempo, já nem sei... Decido seguir o meu desnorte deixando finalmente o sul, primeiro a caminho do mar, afinal a sua água sempre me acalmou. Afogo a saudade na fronteira da terra que o mar serpenteia lá em baixo, ao mesmo tempo que o autocarro o faz velozmente cá em cima enquanto segue o alcatrão e as dunas. Vou parando aqui e alí, em terras de ninguém, ou de alguém que não eu. Paro em terras de peixe e de barcos, na terra dos Nazcas também, onde encontro nas suas estranhas linhas a resposta para pergunta nenhuma. Demoro-me na Lima capital, senhora de todos os tons de cinzento, onde encontro a música, o ruído, a confusão, e de onde o cinza do céu me expulsa aos poucos, rapidamente. Subo por terras de 'Moches' e 'Chimús', povos de pirâmides de terra e areia e de muitos túmulos, senhores de terras de muito pó, de todos os tons de amarelo, de deliciosos ceviches e de mais praia e mais curvas e mais alcatrão. "Lambayeque, Lambayeque!", gritam à exaustão na combi que me leva a conhecer o ainda e eternamente senhor destas terras de Sipán, terras que subo vagarosamente a caminho do norte, 'E o sul?', a caminho de tantas direcções que já nem sei se sigo alguma, porque sigo apenas uma afinal, e nem sei para onde me leva... Mas subo, subo, vou subindo, afinal o tempo faz-se quente lá mais à frente, a norte, e sabe bem sentir o sol de novo mais forte a queimar a minha pele.

Chiclayo, Peru, Setembro 2009























segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Imóvel



Sentado numa pedra, imóvel, estático, eu olho. Mas olho sem ver, de olhos fechados, olho com os sentidos todos, um só, e sinto cada pedra, cada colina, cada casa e ruína, cada um dos acidentes do relevo deste lugar perdido e achado, sagrado, mágico, de outro mundo que não o nosso, certamente. Entrelaço as pernas uma na outra e como que levito baixinho enquanto as minhas mãos percorrem as montanhas à volta, esquerda e direita, desde o místico pico branco do Salkantay ao longe, até às verdes montanhas aqui perto, ao lado. Termino com as duas mãos no meio, a contornar o rosto, o nariz do inca que dorme há muito tempo, deitado, vigiando este lugar à espera do dia em que tenha de despertar da sua hibernação secular, milenar, à espera de nada talvez, certamente. Respiro o ar fresco que sopra e caio também eu no sono do Inca, mais leve o meu, quase desperto até, mas durmo com ele. Durmo e sinto cada pedra do caminho que percorri até chegar aqui, desde a cidade de Cuzco e mais além, nesta viagem toda, nesta vida toda. Sinto os caminhos longos e esguios corridos por ti antes de te deitares aqui, Inca, tal como os meus por esse mundo, tal como os de todo o mundo. Sinto o cansaço, as noites mal dormidas, as dores no corpo, o pó da estrada, a fresca água dos rios, o frio escuro da madrugada passada a subir até aqui. Sinto a pedra quente debaixo de mim como se eu mesmo me transformasse em pedra como tu, Inca, como tu aqui deitado para sempre, preso a este lugar pela pedra e pelo coração que aqui fica, que aqui se eleva, que daqui se vai por aí para sempre, sem nunca daqui sair. A leve chuva que começa a cair trás-me de volta deste transe. Abro os olhos, respiro, levanto-me, dou uns passos para ir embora e olho para trás, para me despedir uma última vez, mas vejo-me ainda ali, sentado, olhando tudo, preso na paisagem, preso aqui. Vejo-me ali, sentado, imóvel, aqui, por aí, pelo mundo, imóvel.

Machu Picchu, Peru, Setembro 2009