sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Por onde os Incas vagueiam


Acordo com a boca seca, como se tivesse levado toda a noite a mascar papel de jornal. Os vidros do autocarro, embaciados da humidade de 40 corpos a ressonar toda a noite, mal me deixam ver com os meus olhos também eles embaciados as paredes ainda escuras desta cidade que amanhece aos poucos. Nem sei onde estou, podia ser Cuzco ou Pequim, tudo me parece igual depois de uma noite mal dormida e acordada repentinamente para comer um escasso pequeno almoço mais forçado que desejado. Chegamos. Saio. O peso da mochila triplica com o peso da altura, mas cada passo já habituado a semanas vividas a tocar as nuvens faz-se lento, pausado, afinal não há pressa. Caminho até ao centro sem ainda me aperceber bem de onde estou até ao momento em que vejo pela primeira vez o puzzle alinhado e perfeito de uma lisa e assimetricamente simétrica parede Inca. Olho com espanto e espanto-me mais ao ver em cima desta uma igreja, uma mais de entre tantas aqui plantadas pelos meus vizinhos Espanhóis à medida que iam passando. Entre o esfregar de olhos para ver se estou bem acordado e o estupor sai-me um 'Mas esta gente não tinha outro lugar onde fazer uma igreja!?', seguido do cair em mim e lembrar-me que isto não passa da necessidade de demonstrar a subjugação para completar a destruição de uma civilização inteira em nome da simples ganância pelo ouro e prata destas terras. Ando um pouco mais e vejo mais do mesmo, edifícios inteiros, ruas de pedras alinhadas que servem de fundações para edifícios outros que não pertencem aqui, apesar de estupidamente belos. Entro por uma estreita e longa rua e sinto-me recuar no tempo, vendo Incas passando aqui, gente outra diferente que nem sei imaginar pois por cada passo que dou com o olhar no chão dou outro a olhar para a frente e as casas de cima não me deixam recuar no tempo mais que breves instantes, segundos breves de incapacidade imaginativa de um tempo ido outro que se foi demasiado depressa, enterrando séculos de evolução incompreendida pelo invasor debaixo de pedras erigidas em nome de uma ganância mascarada de fé e que o próprio Deus se encarregou de uma e outra vez deitar abaixo em abalos de terra que invariavelmente deixaram de pé apenas as pedras de baixo, as que aqui deveriam estar. Continuo. Penso como Português em que fizemos o mesmo, talvez de outra forma e noutro lugar, mas no fundo o mesmo. Sinto-me mal. Ziguezagueio por entre turistas e vendedores, subo e baixo ruas, entro e saio de igrejas, cruzo olhares de gente que acolhe e desconfia, tiro um par de fotos e apesar de estar numa das mais lindas cidades que vi nesta jornada penso: 'Chega'. Vagueio na imperial Cuzco, por onde os Incas vagueiam ainda na sombra das suas pedras, e dói-me que seja assim.

Cuzco, Peru, Agosto 2009















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