quinta-feira, 6 de agosto de 2009

1004

Vivo num postal. Os cantos da minha existência são delimitados pelas margens não de um qualquer pedaço de cartão mas pelas margens do lago que me preenche o olhar. O sol cai e levanta-se de novo, neste postal dinâmico e em constante mutação, reflectindo-se no espelho imenso de uma água fria e cristalina, ora calma ora revoltosa, como um mar em miniatura, um qualquer oceano encerrado entre montanhas do qual tenho uma visão completa, total, como um gigante que observa calmamente o mundo. O postal mexe-se, adormece, desperta constantemente no mesmo lugar, enquanto tudo em seu redor se move. Esta imagem como que parada encerra em si imensas pessoas, que, como formigas, se movem muito depressa apesar de passarem lentamente por aqui, ilusão óptica causada pela velocidade lenta e pausada a que o tempo se move dentro deste postal, o que faz com que tudo o resto pareça despropositadamente rápido. Sinto-me bem, como vendo um filme que eu dirijo, um filme que passa pausadamente neste postal ilustrado de uma terra que não sendo a minha jamais deixará de me pertencer. Dirijo um filme como se de um realizador me tratasse, mas não passo de um realizador de acontecimentos aleatórios que se passam ao meu redor e a cujos destinos sou completamente alheio. Ainda assim sinto-me como sentado numa cadeira, coordenando os movimentos dos que vêm e vão, chegando e partindo, sem nunca se aperceberem que chegada e partida não passam de um movimento contínuo, perpétuo, uma constante viagem em que partida e chegada não passam de ilusões criadas, equivalentes à ilusão da memória e do futuro, esse ideal projectado do que nunca será. Vivo num postal, postal ilustrado de cores, de sons, de maravilhosos momentos, de gente, de amizades, de sabores diversos, de lugares que aqui estão e não pertencem aqui mas a uma velha Europa que ficou do outro lado do Oceano. Vivo num postal que tem um mundo virado de cabeça para baixo, ou que tem o mundo direito num planeta todo ele voltado ao contrário. Vivo. O postal segue aqui, preso nesta liberdade imensa que transmite. Eu não me prendo, sigo, livre, também preso a este lugar, mas movendo-me de novo, preenchido pela liberdade imensa que me dá estar aqui. Volto um dia, e cada dia, ainda que partindo não mais daqui vou sair.

Hostel 1004 - San Carlos de Bariloche, Argentina, Junho 2009

2 comentários:

helena disse...

um texto magnifico. beijos

Unknown disse...

Hola Luis, de parte de la pareja Alloatti -Recreo, Santa Fe, Argentina-. Nos encantooo lo que escribis, es precioso. Te mandamos un beso gigante.

PD: tenes orkut?? Nuestra hija te busco, pero me parece que no te encontró.