quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Uma vez mais o norte


Enceto o caminho de casa, que uma vez mais me leva ao norte, como se fosse esse sempre e afinal o meu destino. Atraído por esse magnetismo polar que me faz uma e outra vez regressar a casa, percorro mais quilómetros de alcatrão negro que consumo como um adito incondicional, devorador de caminhos e direcções que teimo em fazer meus numa viagem constante, infindável. Sigo a caminho de Portugal, e acabo por o encontrar antes do tempo, numa 'Cidade Portuguesa’ que não é mais que uma saudade perdida que encontro sem remorso. Vagueio por estas ruas de outrora, mas rapidamente volto para fora da muralha em busca do que me trouxe aqui afinal, a gente que me estranha com o olhar mas me acolhe, quem sabe mais que em outras paragens já que desabituada do ocasional viajante, esse estranho que aqui não faz viver as gentes. El Jadida rapidamente fica para trás, a voracidade da minha viagem é já grande, volto com data mais ou menos marcada e o tempo para vaguear começa a escassear. Talvez por isso passe ao de leve pela gigantesca Casablanca, que me repele enquanto me atrai no seu cosmopolitismo. Vagueando nada encontro, apenas a vontade de seguir mais além, de me aproximar desse estreito que nos afasta desta terra, esse que me vai trazer de volta ao ‘meu mundo'. Faço no entanto uma última paragem antes de atravessar, um último retiro no azul suspenso nas montanhas de uma Chefchaouen que acaba por me fazer viajar de novo, devagar, na preguiça de subir e descer as suas ruas, de conhecer mais irmãos de destino, de apenas e tão somente descansar da corrida dos últimos dias. Mas o calendário trata de me fazer mover de novo, seguindo para a beira do estreito, para essa fronteira da ilusão de muitos, esse canal de tantas guerras, tantas viagens, tantos sonhos de séculos que eu observo de longe, contemplativo, questionando tantas coisas, tantas certezas, tanto mar, tanta fronteira, tanta gente que me envolve na Tanger que borbulha de vida à minha volta e me vende tudo o que não quero, porque o que quero não se vende, vive-se, e o que vivo não se vende tão pouco, saboreia-se. Já sabe a fim de viagem, e esse doce-amargo sabor faz-me nostálgico, de aqui e de casa, perdido num limbo que não existe, como este canal, ilusão feita diferença, divisão feita de água e de estupidez, linha imaginária onde tantos se tentam equilibrar e onde eu mesmo vagueio hoje, enquanto espero a boleia de volta ao meu lado do mundo. Com um passo atravesso o canal, ainda que ele não me queira deixar passar, parecendo querer-me prender a África, este continente original onde me encontro comigo, onde me revigoro, onde me sinto ao mesmo tempo enojado com tanta diferença, tanto erro do passado, tanto engano do presente, herança de uma história que não me deixa esquecer. As ondas que me parecem afundar neste canal querem mostrar que não é fácil a travessia, que nunca foi fácil passar esta fronteira, que eu como tantos devo pagar um preço, ainda que apenas um enjoo, ainda que apenas um pensamento, sortudo que sou de o não pagar com a vida como tantos que apenas querem ter o direito a sonhar, como eu, que sonho uma vida que não existe e a faço real a cada pequeno passo que sou, que tenho a sorte de poder ser. Esta liberdade que encontro queria dá-la a todos, que fosse de todos, mas o meu poder é pouco, apenas me sinto capaz de desenrolar a minha própria estrada, essa que já do lado de cá me faz adormecer num caminho que termina onde tudo começou, num caminho conhecido que calcorreio e em que a mochila já não pesa, porque a minha cama ali tão perto, porque um aconchego abraçado à distância de um sorriso, porque voltar a casa é também parte da viagem. Mas sei no fundo que já não sou daqui, que sou de lado nenhum, que a estrada é a minha morada, ainda que um dia a não corra, ainda que um dia as forças me falhem e tenha de viajar apenas nas memórias, minhas ou de outros. Não sou de lado nenhum, mas todo o mundo é meu e não descansarei enquanto houver um palmo de estrada para vencer, uma etapa nova para correr, um trilho de desconhecido para desvendar, um sonho novo para sonhar real. Pararei uns dias, mas consciente que o descanso é apenas o princípio, o começo de um dia que mais além me fará de novo viajar, seja qual for a direcção, seja qual for o destino.

Algures entre o Estreito de Gibraltar e Loulé, Dezembro 2010









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