sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Azul Profundo – Crónicas de uma travessia do Atlântico

Atravessei o Atlântico. Sonho antigo, ensejo recente, realidade vivida que lembro já com profunda saudade, a saudade desse azul profundo que me levou ondulando desde um solarengo dia outonal de Lisboa até ao calor tórrido e húmido das terras tropicais do Equador. Foram muitas as emoções, os momentos vividos, as surpresas que o mar, esse meu companheiro de sempre, me fez viver do primeiro ao último dos 21 dias que passei a bordo do BBC Ganges, esse cargueiro de nome pressagioso onde fiz a passagem para um mundo novo de emoções e descobertas. Chegado a terra firme cabe-me agora partilhar algumas dessas emoções, as mais vivas, as que mais me marcaram, as que maior prazer tenho em partilhar. A mais forte de todas, no entanto, não poderei partilhar, já que me é impossível descrever o tom de azul desse mar que me levou, o azul profundo que para sempre levarei comigo como a mais viva memória dos dias que passei a atravessar o Atlântico.




Partida: Até ao outro lado do mar

Às 18 horas do dia 13 de Outubro de 2011 partiu de Lisboa, mais concretamente do Beato, o cargueiro BBC Ganges. Entre a carga diversa e variada que transportava, como é seu desígnio e função, levava uma das menos usuais nas suas muitas viagens ao redor do planeta: eu. Se dúvidas tivesse que um passageiro era aqui coisa rara, a expressão do cadete que fazia guarda ao navio quando cheguei dissipou-as completamente, perdido entre o espanto de ver chegar duas mochilas com um homem agarrado e a incerteza de ter de avisar os oficiais da chegada ao navio do passageiro que ia atravessar o Atlântico. Daí a pouco, no entanto, já o Primeiro Imediato me recebia, dando-me as boas vindas e guiando-me até à minha cabine. A primeira impressão ao entrar e percorrer os corredores do navio foi a de ter recuado no tempo, mergulhando repentinamente na década de 70 ou 80, ou talvez de ter entrado num qualquer velho restaurante Chinês de paredes forradas a pinho e quadros com paisagens de arrozais. No entanto ao chegar à minha cabine essa impressão dissipou-se, já que me senti estranhamente em casa, talvez acolhido pelo conforto da cama e do sofa ou pela existencia de duas janelas para ver o mar durante os meus dias a bordo. Pouco depois o capitão desceu para me conhecer e receber, dando-me em seguida permissão para voltar a mergulhar na capital por mais umas horas. Aproveitei-as para me despedir do arroz de pato, da bica, do pastel de nata, finalmente da família, saudades que deixei em Portugal até ao dia do meu regresso. Ainda meio atordoado pela novidade e pelas poucas horas de sono na curta semana que tive para preparar a partida, voltei ao navio, agora para ficar, agora de vez, agora até ao outro lado do mar. Com o pato ainda a boiar no estômago, jantei em corrida às 5 da tarde, deglutindo numa garfada o que me puseram à frente para poder subir à ponte do navio, bancada privilegiada para assistir à partida, ao último contacto com terra firme até ao lado de lá do Oceano. Eram as 18 horas do dia 13 de Outubro de 2011 quando partiu de Lisboa, mais concretamente do Beato, o BBC Ganges, deixando o cais para deslizar preguiçosamente em frente às colinas da capital, absorvendo das suas casas as cores tingidas da luz alaranjada que o sol emanava lá de longe, desse oeste para onde caminho incessante. Ao sabor da sua corrente, o Tejo mostrou-me o Castelo, a Alfama pendurada sobre o rio, a Sé que espreitava sobre o Terreiro do Paço para ver os cacilheiros a caminho da outra banda, o Bairro lá do alto a brindar-me um até já, a zona ribeirinha que me acompanhou até à ponte, até ao Cristo que me deu um último abraço de boa viagem. Fui sentindo a cidade deixar-me aos poucos, enquanto o Infante foi fazendo as honras da despedida com um último aceno de até breve atirado da proa da sua caravela, também ele saudoso da partida para os mares que um dia foram seus para descobrir. Vi-me também a mim, em Belém, na sua torre, sonhador, olhando os navios a caminho do mar e pensando como gostava de um dia ser eu a partir. Enquanto o Bugio e a Guía de Cascais se despediram de mim com o primeiro balanço das ondas, vi ao longe Sintra e a intensa luz que pisca lá de onde o mar começa, imagens que me foram acompanhando as primeiras horas em alto mar. Saudoso de mim, Portugal ficou a olhar-me de longe por largos minutos, horas, como um pai e mãe que olham o seu filho partir na esperança de o ver regressar em breve. Olhei-o também, petrificado, vendo-o ficar pequenino até que uma lua grande e vermelha rompeu o seu horizonte para coroar o céu de Lisboa da saudade que me vai acompanhar pelo caminho, momento eternizado nessa fotografia que apenas pude tirar com os meus olhos. Parti de Lisboa, invadido da paradoxal sensação de que ao zarpar para terras estranhas encontrei no lugar de onde vim a beleza que espero descobrir noutras paragens, mas abraçado na certeza de que pertenço aqui ainda que parta uma e outra vez. Às 18 horas do dia 13 de Outubro de 2011 partiu de Lisboa, mais concretamente do Beato, o cargueiro BBC Ganges, com destino ao outro lado do mar, e eu parti com ele.

Oceano Atlântico, Outubro de 2011




















domingo, 6 de novembro de 2011

Destino


Segui o meu destino. A estrada há muito que chamava por mim, clamando pelo meu regresso. Dizia baixinho que sentia falta dos meus pés a percorrê-la, do meu suor a cair lento debaixo do sol quente e do peso da mochila, do meu olhar curioso pousado sobre o horizonte que ela vai desenhando ao longe, indiferente, num acaso. Eu também sentia falta dela, do crepitar da gravilha e dos grãos de areia debaixo dos meus pés, do quente alcatrão a derreter levemente à minha passagem, dos quilómetros que passam a inebriar o meu nariz de cheiros que não sei, do acaso a brincar com o destino enquanto desenrola o meu caminho aos poucos, sem pressa. No entanto foi o mar que me levou. A estrada ficou para mais tarde, vencida pela imensidão magnética do oceano que me ondulará, preguiçosamente, carregando-me  através da vastidão de água que levou os Portugueses de outrora a destinos desconhecidos, como esse que irei descobrindo aos poucos, a oeste. Sigo, parto de Lisboa levado pelo mar, viajando novamente, cumprindo cada dia o meu destino.

Lisboa, Portugal, 13 de Outubro de 2011

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Uma vez mais o norte


Enceto o caminho de casa, que uma vez mais me leva ao norte, como se fosse esse sempre e afinal o meu destino. Atraído por esse magnetismo polar que me faz uma e outra vez regressar a casa, percorro mais quilómetros de alcatrão negro que consumo como um adito incondicional, devorador de caminhos e direcções que teimo em fazer meus numa viagem constante, infindável. Sigo a caminho de Portugal, e acabo por o encontrar antes do tempo, numa 'Cidade Portuguesa’ que não é mais que uma saudade perdida que encontro sem remorso. Vagueio por estas ruas de outrora, mas rapidamente volto para fora da muralha em busca do que me trouxe aqui afinal, a gente que me estranha com o olhar mas me acolhe, quem sabe mais que em outras paragens já que desabituada do ocasional viajante, esse estranho que aqui não faz viver as gentes. El Jadida rapidamente fica para trás, a voracidade da minha viagem é já grande, volto com data mais ou menos marcada e o tempo para vaguear começa a escassear. Talvez por isso passe ao de leve pela gigantesca Casablanca, que me repele enquanto me atrai no seu cosmopolitismo. Vagueando nada encontro, apenas a vontade de seguir mais além, de me aproximar desse estreito que nos afasta desta terra, esse que me vai trazer de volta ao ‘meu mundo'. Faço no entanto uma última paragem antes de atravessar, um último retiro no azul suspenso nas montanhas de uma Chefchaouen que acaba por me fazer viajar de novo, devagar, na preguiça de subir e descer as suas ruas, de conhecer mais irmãos de destino, de apenas e tão somente descansar da corrida dos últimos dias. Mas o calendário trata de me fazer mover de novo, seguindo para a beira do estreito, para essa fronteira da ilusão de muitos, esse canal de tantas guerras, tantas viagens, tantos sonhos de séculos que eu observo de longe, contemplativo, questionando tantas coisas, tantas certezas, tanto mar, tanta fronteira, tanta gente que me envolve na Tanger que borbulha de vida à minha volta e me vende tudo o que não quero, porque o que quero não se vende, vive-se, e o que vivo não se vende tão pouco, saboreia-se. Já sabe a fim de viagem, e esse doce-amargo sabor faz-me nostálgico, de aqui e de casa, perdido num limbo que não existe, como este canal, ilusão feita diferença, divisão feita de água e de estupidez, linha imaginária onde tantos se tentam equilibrar e onde eu mesmo vagueio hoje, enquanto espero a boleia de volta ao meu lado do mundo. Com um passo atravesso o canal, ainda que ele não me queira deixar passar, parecendo querer-me prender a África, este continente original onde me encontro comigo, onde me revigoro, onde me sinto ao mesmo tempo enojado com tanta diferença, tanto erro do passado, tanto engano do presente, herança de uma história que não me deixa esquecer. As ondas que me parecem afundar neste canal querem mostrar que não é fácil a travessia, que nunca foi fácil passar esta fronteira, que eu como tantos devo pagar um preço, ainda que apenas um enjoo, ainda que apenas um pensamento, sortudo que sou de o não pagar com a vida como tantos que apenas querem ter o direito a sonhar, como eu, que sonho uma vida que não existe e a faço real a cada pequeno passo que sou, que tenho a sorte de poder ser. Esta liberdade que encontro queria dá-la a todos, que fosse de todos, mas o meu poder é pouco, apenas me sinto capaz de desenrolar a minha própria estrada, essa que já do lado de cá me faz adormecer num caminho que termina onde tudo começou, num caminho conhecido que calcorreio e em que a mochila já não pesa, porque a minha cama ali tão perto, porque um aconchego abraçado à distância de um sorriso, porque voltar a casa é também parte da viagem. Mas sei no fundo que já não sou daqui, que sou de lado nenhum, que a estrada é a minha morada, ainda que um dia a não corra, ainda que um dia as forças me falhem e tenha de viajar apenas nas memórias, minhas ou de outros. Não sou de lado nenhum, mas todo o mundo é meu e não descansarei enquanto houver um palmo de estrada para vencer, uma etapa nova para correr, um trilho de desconhecido para desvendar, um sonho novo para sonhar real. Pararei uns dias, mas consciente que o descanso é apenas o princípio, o começo de um dia que mais além me fará de novo viajar, seja qual for a direcção, seja qual for o destino.

Algures entre o Estreito de Gibraltar e Loulé, Dezembro 2010









quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Encontrei uma janela por onde o vento sopra poemas



Encontrei uma janela por onde o vento sopra poemas, trazidos do mar numa brisa salgada que me salpica de palavras. Desconheço de onde vêm, só sei que vêm, muitos, soprados desse longínquo mar, ainda que fronteiro, esse que nos trouxe a nós, povo Luso, para erguer aqui um dia esta janela por onde hoje os poemas entram ao ritmo de fortes rajadas e sonhos de aqui e de outrora. São simples poemas, sonhos de viagens, de longas jornadas caminhadas ou balançadas nas ondas que nos empurraram, que nos empurram, que me empurram a mim também e repetidamente me levam a outras paragens atraído pelo doce canto de uma curiosa sereia chamada viagem. Sentado neste forte, qual pescador, apenas abro as páginas ao vento para apanhar os poemas, prendê-los nesta rede de papel em letras que escrevo, que gatafunho muito rápido para os não perder, inutilmente, já que nem um batalhão de poetas os conseguiria agarra a todos, demasiados, voando por sobre a minha cabeça para se estatelar nas janelas das brancas casas que povoam este lugar, no azul dos barcos que uma e outra vez saem do porto para tão somente poder regressar, no canto imenso das gaivotas, nuvem em constante vai e vem nos céus desta terra que um dia deixámos aqui perdida para ser várias vezes encontrada, reencontrada, perdida de novo apenas na esperança de a poder reencontrar... Janela, por onde o vento sopra sonhos de uma interminável viagem, promessa de um mundo novo de sonhos, estranho néctar que me inebria e me faz adicto a este lugar de onde não consigo sair, preso às ruas que aos poucos me vão conhecendo, às gentes com quem me vou confundindo, às rochas onde o mar chega revolto, à baía onde o mar se faz calmo, ao sol que todos os dias se põe, como num outro qualquer lugar, mas que aqui uma e outra e outra vez me prende como ao primeiro ocaso, apaixonando na lenta carícia do sol que se afunda no mar, esse lugar-comum quase óbvio, repetitivo, banal até, mas que aqui se torna único cada dia, apaixonante, atormentadoramente belo. Encontrei uma janela por onde o vento sopra poemas, que não sei de onde vêm, nem para onde vão, mas também não me interessa, não quero saber, apenas abro as páginas, os olhos, o nariz, e respiro, respiro muito, deixando-me encher de um ar novo e sentindo na pele os dias que passam por mim, devagarinho, esquecido eu também, como esta velha janela, pendurado sobre este mar que contemplo preguiçoso à espera do dia que me leve de volta.

Um amigo

Vou fazer-te palavras, amigo, preencher de letras cada ruga do teu rosto, esse que olha o horizonte vago como um marinheiro de fito perdido nas marés, esperando infinitamente por um barco que chegue para te levar mas que nunca chegará. Vou fazer-te palavras, amigo, encher de conversas estes nossos silêncios, conversas sem fim em que as nossas palavras não se perderam na tradução que nunca existiu, em que te compreendi melhor que muitos que falam sem sentido, perdidos na ilusão de que enchendo o mundo de palavras preenchem o vazio que trazem consigo. Não, não foram precisos dicionários elaborados, tradutores letrados, ou uma qualquer estranha magia que nos fizesse entender o ininteligível e aprender num segundo o que muitos não aprendem numa vida inteira. Não, não foram precisas palavras para te entender, apenas um sorriso encoberto, esse que trazes contigo, amigo, esse que mostras a poucos, mas que mostras com o coração, esse mesmo coração que repetidamente tocas com a tua mão trabalhada pelo tempo, pela vida que claramente te foi dura, que dura e sobrevive espelhada no sorriso sem fim que nos ofereces sem nada esperar mais que um simples abraço amigo, como tu, que levo daqui na lembrança desta terra que és tu também, memória deste estranho país que se me vai entranhar mais do que penso, desta terra que sei que vou recordar quando me perder por outros caminhos e sentir falta de uma casa, amigo, esta que tenho aqui também porque te encontrei a ti. Vou fazer-te palavras, amigo, ainda que elas não tenham feito falta para que hoje te possa chamar assim, de amigo.

(em homenagem ao Ahmed, incansável porteiro do Hostel El Pacha, pessoa simples, melhor cozinheiro de Essaouira, e acima de tudo um amigo)



Essaouira, Marrocos, Novembro/Dezembro 2010