quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Do outro lado do estreito - interlúdio, ou o recomeço de uma viagem sem fim


Sinto de novo a brisa de estranhos odores, sabores desconhecidos que povoam a minha degustação de quilómetros de estrada, esses que devoro de novo num interlúdio de uma viagem maior, sem fim, suspenso na memória de dias andarilhos que passaram muito rápido e que retomo de novo, ao sul, do outro lado do estreito. Aterro caído do céu, subindo e baixando num instante que me levou de terras conhecidas, natais, até ao meio de medievais e estreitas ruas que se contorcem e retorcem e me perdem em tempos já partidos que renovo a cada passo que dou. Perdido na máquina do tempo, desconheço o caminho que tomo ao passar a porta azul que lhe serve de entrada, deixando que a esguia viela da medina me embeba devagarinho num meandro de gente, especiarias, tapetes, animais, roupas, comidas, demasiadas coisas que se atafulham e se vendem em parco espaço. Paro um pouco para olhar a gente que me envolve, gente que sobe e que desce, que me empurra e me puxa, que me vende, que me olha, que me ignora e me hospeda, um lençol fino e estreito de gente que caminha envolta em raros tecidos e que se movimenta, como eu de novo, ao encontro de mim, de todos, de ninguém. Um pouco mais além ouço o ruído inquietante da mesquita que me chama para a oração, sentindo no corpo essa reminiscência do que devo um dia ter sido em terras do ocidente Al Gharb, esse território liberto de um infiel inimigo que afinal se parece tanto comigo. Sem saber dei passos pequenos ao encontro daquilo que fui em vidas passadas, daquilo que poderia ser eu se essa cruzada anterior à memória da minha nobre nação nunca tivesse existido. Ando mais e perco-me de novo, mais, de propósito, caminhado sem fim até me encontrar num acaso com a saída que me leva para fora do tempo e ao encontro do conforto da riad, casa que se faz minha nos sorrisos de novos amigos que me abrem o rosto para me acolher no seu coração. Sinto-me vivo de novo. Do alto do terraço o raro cheiro das especiarias enche-me as narinas, a boca, os pensamentos, enquanto o chamamento dos imãs que ecoa no horizonte deste pôr-do-sol de Fez me renova a certeza de que estou em paragens distintas da minha, ainda que o céu seja do mesmo tom de azul. Sinto-me vivo outra vez, com mais vontade de sentir, de provar, de absorver, de conhecer, de errar, enfim, de viver. Sinto de novo o sangue a correr-me nas veias, a estrada faz-me bem.

Fez, Marrocos, Outubro de 2010