segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Meio Mundo, Mundo a meio


Equador, o meio do mundo... Subo por este país acima a caminho da linha que divide o planeta, sem saber ainda o que vou encontrar neste mítico lugar. Mas o que há afinal a meio do mundo? A meio do mundo há acima de tudo bananas, muitas, imensas florestas sem fim de bananeiras que alimentam o mundo dessa gulosa fruta, lembrança genética presente do nosso passado primata. Há também calor, um calor húmido que me empapa o corpo enquanto percorro as ruas de Guayaquil em busca de peixe e de um refresco, os quais invariavelmente encontro frente ao rio onde deixo os meus olhos descansar um pouco. Há ainda muita gente, de afabilidade variável, talvez devido à normal timidez humana, talvez não, afinal nestas latitudes esse traço de personalidade parece variar com a altitude a que estamos. Confirmo isso ao subir até Cuenca, terra andina de gentes afáveis mas mais calmas e caladas, de ruas mais estreitas e escuras, nesta espécie de cidade do interior Andaluz ou da Extremadura Espanhola e perdida pelo acaso nos Andes. Não me demoro, sigo afinal a caminho do meio do mundo e essa linha que divide o norte do sul está mais acima. Vou subindo pelo interior andino, entre vales e vulcões que me rodeiam nesta paisagem mais verde que a da cordilheira a sul mas ainda assim acidentada, irrequieta, similar. Ouço o ronco do motor deste autocarro que rodeia as curvas no caminho de Riobamba para Quito e lembro muitas outras, curvas e rectas, de alcatrão, terra ou areia, percorridas desde Janeiro, desde o Brasil onde começou esta aventura. Lembro cada dia, cada hora, cada solavanco do caminho, cada mergulho na água, cada sorriso e amigo que fiz, cada abraço forte, cada pôr-do-sol e alvorada, cada música, cada saudade vivida, antiga ou recente, cada raio de sol, gota de água e floco de neve. Lembro cada minuto passado e vivido em companhia, humana ou não, em companhia de mim mesmo grande parte do tempo, o tempo todo afinal. Um sorriso começa a crescer no cantinho da boca ainda que o peso das pernas seja já muito. Por entre pensamentos aparece Quito, aos poucos, ao longo do vale. Já no centro vejo das mais lindas igrejas e edifícios enquanto me perco por ruas de calçada, mas sinto ao mesmo tempo estar numa espécie de cidade zombie em que muitos vagueiam as ruas claramente com pouco nos bolsos, menos na barriga e com demasiadas ideias na cabeça. Algo não bate certo neste país de petróleo e bananas a mais e dinheiro e comida a menos, mas é afinal apenas mais um, este país não está só, isto não é apenas daqui. É assim o meio do mundo, pelo menos neste país que ostenta o nome da mágica linha onde sul e norte se encontram. Chego eu também ao meio. Se o fim do mundo não foi o final da viagem o meio também não o é, sendo-o. É o meio, um dos meios da minha viagem maior. Chegou o meio do mundo e com ele a hora de parar, descansar, a hora de voltar a ver a saudade de frente no dia-a-dia do desenho de uma calçada, de uma sardinha que se assa a olhar para um copo de vinho, de uma bica que namora um pastel de nata, de um Português que reclama da vida no intervalo da bola, de um abraço de amigos antigos e de família. Chegou afinal a hora de voltar a respirar fundo o ar com maresia de Portugal, do meu Algarve natal. Vislumbro a linha mágica ali tão perto e penso em tanto caminho para correr adiante, mas não sigo, não agora, ainda não. Com o bilhete na mão e a mochila às costas lá vou eu, a caminho do avião que atravessa o Oceano, sempre com o sorriso no canto da boca, afinal já corri meio mundo e o fim não é mais que uma pausa, um respirar fundo antes de começar tudo de novo.





Quito, Equador, Outubro 2009

Duna


Parado. Finalmente parado. Vivo numa duna, dentro da sua areia branca ora soprada pelo ar ora empurrada, molhada por este mar das ondas constantes e fortes, não demasiadas, antes perfeitas. Caranguejo, escavo o meu caminho em direcção ao mar, onde mergulho o meu corpo para depois o deixar flutuar leve, sem peso, envolto numa frescura que contraria o sol que insiste em me aquecer, felizmente. Tenho os olhos fechados. A escuridão avermelhada que vejo é tão cheia de luz que fere, alucinando-me o sangue fervido pelo sol e pelo caminho percorrido nos últimos nove meses. Mergulho a audição para escutar o mar e ele segreda-me baixinho as conchas que vão e vêm, o subir e descer da maré e das ondas, o mergulho espaçado de pescadores com asas que fainam incessantemente, como se amanhã não houvesse mundo. Segreda-me todo o seu fundo baixinho, como se fosse eu mesmo um peixe mais, um velho amigo que volta depois de muito tempo. E sou. Se dúvidas tivesse perco-as ao abrir os olhos e ver um velho lobo marinho que flutua, nadando ao meu lado, olhando-me, acompanhando-me neste momento. Tímido, ao ver que me apercebi da sua presença pisca-me o olho e mergulha, vai, sai por esse mar fora. Perco-o nas ondas, não importa. Antes fico aqui, esquecido, olhando o sol que quer ele também fazer parte deste mar e se afunda nele devagarinho, enquanto o meu corpo se afunda também, na duna, de novo. Os olhos fechados ouvem ao longe o mar que me embala o sono. Sei que estou no paraíso. Respiro-o devagarinho, uma e outra vez, sem pressa nenhuma de o respirar todo de uma vez. Não há pressa de nada, vivo numa duna, parado, preso na liberdade de viver o paraíso.

Vichayito - Mancora, Peru, Outubro 2009