segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Uma aldeia


Uma aldeia. Grande, mas uma aldeia. Cheia de carros e prédios, do mais moderno da modernidade, das lojas de grandes marcas, dos bairros ricos e exclusivos. Mas ainda assim uma aldeia, cheia de gente simples, que vagueia as ruas desta grande cidade indiferente ao seu tamanho, vivendo como numa qualquer aldeia dos Andes, com as mesmas roupas e hábitos simples vividos por séculos e onde apenas o ocasional telemóvel interrompe o vagaroso caminhar que os impede de se afogar na rarefacção de oxigénio causada pela altitude. Uma aldeia de feiras e igrejas e ruas cheias de gente e cores e casas penduradas nas paredes que rodeiam o vale e que se amontoam umas nas outras, aldeia em cima de aldeia, muitas aldeias nesta aldeia grande de gente simples. Aldeia cheia também de turistas, muitos deles alheios a ela, fechados em bolhas de ocidentalidade de onde não saem senão na hora de chegar e partir, sem nunca provar da aldeia o seu verdadeiro sabor, o viver das suas gentes, a verdadeira essência de La Paz. Uma aldeia, onde o meu caminhar apressado me faz faltar o ar, talvez porque me deixe enganar pela sua aparência de cidade e me esqueça que estou afinal numa aldeia, e nas aldeias não há razão para ter pressa.


La Paz, Bolívia, Agosto 2009











segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Parada

Olhando a parada que celebra a independência da Bolívia, com Evo Morales acenando lá de cima à gente que o olha cá de baixo, eu sonho. Sonho com o dia em que a desfilar na parada celebrando um país não haja militares nem armas. Desfile gente, normal gente, gente que faz o país. Venham palhaços e sapateiros, maestros e músicos outros, carpinteiros e pedreiros, banqueiros e cauteleiros. Venham poetas e escritores, metalúrgicos e empresários, os que estudam e os que não, as donas de casa e seus filhos, pescadores e agricultores, porteiros e taxistas, os árbitros e desportistas. Venham arquitectos, engenheiros, doentes, médicos, enfermeiros, bombeiros e condutores. Venham os loucos e insanos, sem eles não há parada, venham políticos também, não fiquem só na bancada, juntem-se ao povo os militares, a todos que somos iguais, que não só de armas e guerra são feitos os arsenais. Venha um país todo, cheio, de gente que o preenche e faz, na luta de cada dia por viver e ser feliz . Mostre-se ao mundo o país, tudo o que ele contém, não apenas a pistola que as fronteiras mantém. Mostre-se tudo o que faz esse país especial, a arte, a luta, o trabalho, o sangue e suor derramados, o orgulho em ser humano, e o amor, sim o amor. Não se mostre ódio ou rancor ou racismo ou estupidez. Abrace o nacional o estrangeiro, como ilustre convidado, abram-se as portas do que é nosso a quem quer saber o que somos. Chega de ódios e lutas, de fronteiras e de guerras, chega de limites e prisões que nos tiram a liberdade. O mundo é de todos, de todos! Celebremos o país como cultura que é, não com um qualquer galinheiro de farpado arame envolto. Sonho com o dia em que desfilando na parada celebrando um país não haja militares nem armas. Sonho, mas para quando o dia em que não vou ter de sonhar?

Sucre, Bolivia, 5 de Agosto 2009







domingo, 18 de outubro de 2009

Os mineiros de Potosi

Não consigo escrever. As palavras não me saem, não consigo encadear ideias nem imagens, não me sai nada. Acabo de viver uma das experiências mais lindas desta viagem e ainda assim não consigo descrever o que senti e vivi. Pessoas, simples, mais trabalhadores que eu algum dia fui ou poderei ser, porque vivem dedicados ou presos uma vida inteira a um trabalho intenso dentro de uma mina que foi praticamente quem os deu à luz, que os dá à luz um dia após outro. Gente que inala fumos, poeiras, que vive na escuridão para conseguir o quase nada que lhes dá essa montanha sagrada e suja, delapidada pela ganância de séculos. Gente que pouco tem e que uma vez por ano festeja a sorte de não ver ninguém desaparecer, que pede uma vez mais à Mãe-Terra que não os engula. Gente que nesse dia tudo esquece, que nesse dia sorri. Gente que não me conhece, não sabe quem sou, de onde vim, para onde vou, mas que me abre a porta e me acolhe como um irmão, como aquele irmão que esteve longe toda uma vida e a quem se abre a porta para o tratar como um rei. 'À espera de quê?', pergunta uma qualquer mente conspurcada pelo nosso dia-a-dia de ganância. À espera de nada, de sorrisos talvez, à espera tão somente de que podamos partilhar com eles a sua felicidade, as suas bebidas, a carne dos lamas que oferecem à PachaMama, a sua música, a sua dança, a sua casa. À espera que saiamos de lá com o mesmo sorriso que eles, que voltemos um dia para uma vez mais sorrirmos junto com eles. Saio sem palavras, a escrita não me sai porque olho para os lados, para trás, para o mundo, para a minha vida, e me sinto sujo, indigno. Sinto que este mundo tem muito que reaprender, que nos afastamos demasiado a cada dia do que importa, do que realmente interessa. Esquece-mo-nos que a vida para o amor e um sorriso pode existir se quisermos, ainda que prefiramos prender-nos a outras coisas materiais, a tanta coisa que nos distrai e nos afasta de nós mesmos. Não digo que se deva travar o progresso das coisas, que tanta coisa boa também nos trás, apenas me pergunto se estamos a correr o caminho correcto e a resposta parece tão óbvia que me dá vontade de chorar. Estamos a destruir o nosso mundo, mas mais do que o planeta em si que se sabe cuidar a ele mesmo e tratará de nos eliminar se continuarmos neste caminho, estamos a destruir em nome do progresso relações humanas, a capacidade de amar, de nos darmos aos outros, de confiar. E não tem de ser assim, há outras vias de progredir realmente, em todos os sentidos, sem ter de sacrificar o Homem pelo puro e simples X% a mais de lucro. E não é de hoje, nem de ontem, é a natureza humana talvez, ou a incapacidade de cada um de nós vivermos livres. Mas é sempre e na presença de gente simples que me acolhe de braços abertos que sei e vejo que a natureza humana não serve de desculpa, porque há neste mundo tanta gente que, ainda não tendo muito, dá tudo o que tem por um sorriso. Ainda há esperança, mas para quando? O que temos de fazer, o que podemos fazer cada dia para mudar e melhorarmos a vida de todos nós? Olho para o papel e não sei o que dizer, talvez porque fiquei com a voz embargada ao sentir o abraço forte e o sorriso simples dos mineiros de Potosi que me tirou as palavras da boca e os pés do chão.

Potosi, Bolívia, 1 de Agosto 2009

p.s.: Muito obrigado ao amigo Karim pelas fotos e por me ter guiado a esta experiência.







Fotos: Karim BenBenai

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O encantado mundo de Uyuni



Para seguir o seu caminho os quatro cavaleiros tinham de atravessar o encantado deserto de sal de Uyuni, que se dizia estar guardado por seres mágicos e encantado por estranhos feitiços. Guiados pelo seu fiel escudeiro, que os levava no seu cavalo de metal, eles entraram pela imensa brancura. Ao fim de algumas horas chegaram a um oásis de cactos onde o seu escudeiro ia fazer descansar a besta que os transportava. Enquanto esperavam um simpático velho convidou-os a caminhar pelo deserto enquanto os encantava com lindas fábulas. Já dentro do deserto o velho transformou-se! Era um mago disfarçado que lhes disse: "Entraram neste deserto sem prestar homenagem à Pachamama, a Mãe-Terra, que está furiosa com vocês! Agora terão de ir até à montanha de gelo prestar a vossa homenagem ou o vosso amigo encolherá até desaparecer!" E com um raio transformou um dos cavaleiros num pequeno anão de um palmo, desaparecendo em seguida. Enquanto os três grandes se entreolhavam confusos e punham o agora cavaleiro anão no bolso, o seu fiel escudeiro apareceu em seu resgate e levou-os de volta ao oásis. Depois de se pôr ao corrente do que tinha passado disse: "Temos de de chegar à montanha antes da aurora, ou ele desaparecerá para sempre!" Assim fizeram, saindo rapidamente do salar em direcção ao monte sagrado. Mas para poder nele entrar tinham primeiro de recolher os 4 elementos que permitiriam quebrar o feitiço. Assim fizeram, passando primeiro na lagoa dos flamingos sagrados, onde recolheram uma pena com a qual iriam homenagear o ar. Em seguida dirigiram-se ao deserto onde encontraram uma árvore de pedra de onde recolheram uma folha para homenagear a terra. A última paragem antes de chegar à montanha foi o lago rosado de onde recolheram o seu mágico líquido que iriam oferecer como sinal do respeito pelas águas do mundo. Chegados à montanha os 4 cavaleiros e seu escudeiro venceram as negativas temperaturas da fria madrugada para orar à Pachamama. Diante de uma das poças de lama em ebulição oferendaram os outros 3 elementos dentro do fogo que vinha de dentro da montanha, agradecendo a estranha aventura que tinham vivido. Quebrado o feitiço o cavaleiro anão voltou ao tamanho normal à medida que o sol subia lentamente. Já capaz de abraçar os seus amigos ele agarrou-os agradecendo, ficando os 5 a ver o sol que subia por entre a bruma sulfurosa da alvorada.

Uyuni, Bolívia, Julho 2009