sábado, 18 de abril de 2009

Tango sentido


Caminho. Vejo e sinto o chão desaparecer debaixo das minhas pegadas, de cada passo que dou, ora lento ora vagaroso. O chão cinzento não termina, segue contínuo, como se não mais tivesse fim, apenas intercalado por uma rua que se cruza, um buraco que se abre, um quiosque, uma esplanada, pela muita gente que caminha e me faz ziguezaguear aqui e ali. Caminho e vejo. Vejo gente. Vejo cafés, lojas. Vejo o sol que cai ao longe, com a sua luz que se apaga, para dar lugar à noite que chega aos poucos apenas para dar continuidade à confusão que reina durante o dia. Caminho e vejo ao longe o horizonte no infinito desta rua sem fim de Buenos Aires, desta Buenos Aires das ruas sem fim. Não vejo palácios rosados nem coloridas casas de lata, não vejo casas antigas que se alinham sem fim nem modernos edifícios num porto roubado à natureza. Nem sequer vejo a gente em euforia que faz vibrar as bancadas que tremem ao ritmo da emoção e dos golos. Muito menos os parques, as largas avenidas, o rio feito mar, não vejo nada disso. As longas horas a caminhar passo-as a ver quem está, quem passa. A pensar, a sentir. A sentir o ar que entra abafado, a ouvir os carros que correm nas ruas, a ver gente que como eu caminha sem parar. Ponho-me a imaginar o que pensará, o que sentirá cada pessoa que passa, mas logo me perco nos meus próprios pensamentos, nesse sorriso que teima, que vejo cada vez mais longínquo. Sorrio também. Recordo amigos, como foi bom sentir-me com eles em família, partilhar mates, assados, bebidas, histórias sem fim... Mas o sorriso teima em voltar, para me recordar mais momentos lindos, vividos antes e agora, passados num instante, que se vão embora pouco a pouco, trazendo a nostalgia do presente que rapidamente se faz passado, por mais que eu queira espernear. Antes sigo, caminho pela noite dentro, esperneando contra o pavimento, bailando com esta gente que desconheço mas que se cruza, partilha este passeio, esta cidade, este instante que corre. Ao longe uma música abafada puxa pelos meus passos. Sigo-os. Deixo a suave melodia tomar conta de mim e o momento governar os meus sentidos. Os meus olhos bailam nos pés, nos corpos que se movem lentamente, enamoradamente, contorcendo-se, envolvendo-se, apaixonando-se. Sinto o som com os meus dedos, com a minha coluna por onde baixa lentamente este tango, que saboreio com a saudade de um sorriso. Escuto sem saber o que ouço, ouvindo o que não escuto, ouvindo antes o coração que canta assim:

"Vos sos sonrisa en mi boca, la sonrisa que no está,
Vos sos la luz que ilumina mi Buenos Aires,
Sos la tristeza de un adiós que no quería,
El feo adiós de una sonrisa que se fue.

Sos el todo de una pasión, de un lindo sueño,
Vos sos un tango que bailó dentro de mi,
Sos ese tango que aun baila dentro de mi corazón,
Vos sos el tango que bailé pero se fue.

No te vayas de mi vida! Ya te fuiste...
No te olvides lo lindo que fue lo nuestro,
Ya me voy pero el dolor aquí se queda,
Porque tan solo tu sonrisa está en mi.

Vos sos el tango Argentino que bailó un Portugués,
Sos la nostalgia que cambió, vos sos saudade!
Serás, mi linda, para siempre una sonrisa,
Dulce pasión que me prendió a Buenos Aires."

Os passos resolvem seguir a rua de novo e o chão começa a mover-se debaixo dos meus pés. A luz que se faz ténue acompanha o som que também se vai abafando, aos poucos, que escuto cada vez mais longínquo, como uma saudade que fica enquanto me vou embora. Sigo apenas os meus próprios passos, bailando ainda por dentro este tango que toca sem parar, mas que se vai abafando, aos poucos...

Buenos Aires, Argentina, Abril 2009





Uma qualquer lenda...

Olhando estas águas que caem sem parar ponho-me a pensar como tudo terá começado por aqui... Os índios Guarani tem a sua explicação numa linda lenda que poderia transcrever aqui, mas resolvo antes tentar criar a minha. Fecho os olhos, sinto a água salpicar a minha cara e deixo que a imaginação me leve por ai abaixo...


"No tempo em que os deuses ainda vagueavam pela terra havia um rio. Era mais um riacho, daqueles pequenos, que serpenteava vagarosamente por entre raízes e pedras, sem pressa nem destino, apenas indo. Até porque o que ele gostava mesmo era de sentir cada curva do caminho, cada lugar por onde passava. Deliciava-se a sentir as diferentes temperaturas, texturas e sabores de cada pedra, cada árvore, cada grão de terra, cada animal que nele matava a sede. De tão feliz este riacho começou aos poucos a suspirar de alegria, em especial no seu local favorito onde uma pedra rosada o fazia sentir diferente, feliz, numa alegria tal que nem ele sabia explicar. A pedra também adorava sentir o riacho passar, deixando-se envolver, sentindo a frescura deliciosa que cortava o calor abafado daquela floresta. Um dia sem saber como eles apaixonaram-se. O riacho corria mais depressa apenas para a encontrar e a pedra, ansiosa, respondia ao seu suspiro com um doce canto, esperando que assim o riacho nunca dela se perdesse.
Certo dia um deus qualquer, vagueando pela terra, ouviu ao longe um doce canto. Parou, investigou de onde vinha e logo deu com a pequena pedra rosada. Tao lindo era o seu cantar que logo se apaixonou. Passou a vir todos os dias só para a ouvir, ficando mais e mais tempo. Tanto tempo passou que logo se apercebeu que a pequena pedra não cantava para si mas que canto e suspiro eram um só, fruto de uma paixão que não era a sua. Irado pela inveja, o deus decidiu arrancar a pedra para consigo a levar para longe, para dele ser para sempre, dele e de mais ninguém. Mal o fez e logo a pedra chorou, de dor e tristeza, por não sentir junto de si o seu amado. Chorando suplicou para que a devolvesse ao seu lugar, pois não poderia mais viver longe do seu riacho. Ao ouvir isto o deus, aturdido pela ira da inveja e do despeito, disse gritando: "Pois se minha não queres ser, para sempre viver na glória da minha companhia e beleza eternas, também não serás de mais ninguém!" E fechando o punho esmurrou a pequena pedra contra o chão, afundando-a na cratera enorme que abriu, escondendo-a para sempre do seu amado riacho.
Ao ver tudo isto na impotência de algo poder fazer o riacho soltou um rugido de dor imenso, ouvido por toda a parte. E chorou, chorou, chorou sem parar. Ao ouvir tal rugido, tanto choro, seus irmãos, primos, vizinhos, todos vieram ver o que se passava. Ao chegarem o riacho entendeu que ganhava força e que se mais riachos viessem em seu auxilio talvez todo juntos pudessem escavar a rocha e encontrar a sua amada. Assim todo juntos rugiram, chamando mais e mais riachos, crescendo o seu caudal que descendo vertiginosamente o precipício começava a escavar o fundo.
Ainda hoje o então riacho corre sem parar, usando a sua força e dos seus irmãos e amigos na busca incessante pela sua amada. Ninguém sabe ao certo se já se encontraram, mas há quem diga que riacho e pedra vivem alegremente debaixo do leito do Iguaçu, escondidos por detrás das cataratas, enquanto a grande água aplaude sem parar o doce canto dos namorados."

Cataratas do Iguaçu, Brasil/Argentina, Março 2009








quarta-feira, 8 de abril de 2009

São Paulo


Eis a grandiosa São Paulo: prédio, prédio, cimento, prédio, gente, gente, demasiada, indiferente, correndo, entre os prédios, os carros, correndo. Corro também, nem sei porquê, sem parar, vendo gente, por todo o lado, de todos os lados, de todas as origens. Corro e chego ao parque, onde respiro finalmente. Olho os prédios reflectidos na água e sei que não pertenço aqui... Antes sigo, amigos esperam por mim, aqui e também mais além, ainda em São Paulo, mas no interior, no caminho que me leva à Argentina que também me espera. Paro um pouco, para me sentir em casa antes de continuar. Mas logo a estrada chama por mim de novo e lá vou eu outra vez...

Presidente Prudente, Brasil, Março 2009

"Olha que coisa mais linda..."


Espero sentado. É hora de partir, por fim deixar o Rio de Janeiro para trás, ao fim de três semanas... E como é difícil deixar esta cidade... Muito! É complicado deixar para trás amigos, memórias, alegrias, emoções fortes e variadas. É difícil deixar para trás blocos de carnaval, rodas de samba, botecos animados, festas sem fim, paisagens únicas, natureza, praia, cidade, confusão, sorrisos. É complicado deixar os braços do Redentor talvez porque me sinto em casa aqui... Ou talvez apenas porque o encanto desta cidade é realmente grande, apaixonante, único. Mas por agora é hora de seguir. Seguir para um dia voltar, talvez num futuro bem próximo, talvez apenas nas asas do sonho e da saudade. Mas a vontade fica dentro de mim, e como fica...






Era uma vez no bloco...
















Barulho. Em crescendo, à medida que se vai juntando mais gente. De longe em longe um ameaço de samba num pandeiro, cuíca ou bombo que aquecem, aos poucos, sem pressa. O burburinho não pára de crescer e a gente vai ficando animada. É um coelho que chega, com a branca de neve barbuda. Os anões não estão, ou talvez se tenham perdido na multidão. Ao longe um grupo de bailarinas termina, ou talvez comece, o ensaio da sua coreografia idiota, à qual se junta um gnomo, um estrumpfe, eu sei lá... A enfermeira camafeu vem em auxílio de quem passa enquanto um árabe corre o Tio Sam à sapatada. Quando a música finalmente começa já a multidão é uma só, compactada num zoo onde não só animais cabem. Aos primeiros acordes a alegria e este bloco pintado por Dalí começa a mover-se sem parar, dançando e pulando como uma só massa viva, cantando em uníssono velhas músicas da minha infância carnavalesca de Loulé. Aqui também se olha a cabeleireira do Zézé e a chiquita também se veste com uma casca de banana, muito provavelmente depois de teimar que cachaça é água, acabando por só dar ela na passarela. Mas também se tocam novos sons, muitos apenas novos para mim. Eis que um grupo de belas misses aparece para cumprimentar a multidão, acenando com seus peludos braços a este grupo dantesco de criaturas encaloradas, a quem apenas vale o ocasional jorro de água atirado de uma janela e a muita cerveja que refresca por dentro. Olhando de longe esta confusão de roupas e cores até apetece procurar o Wally. Olha! Ali está ele! Ou será ela? Resolvo esfregar os olhos para ter a certeza que é mesmo o Wally e não o calor que me transporta para um qualquer deserto de miragens. E como o vejo de novo... Ajeito a mini-saia, componho as orelhas e o laço na minha cabeça, e ai vou eu de novo procurar o Mickey, ou simplesmente uma lata de cerveja, porque o calor é muito e o bloco não para...














Foto:Erika Tambke



"Brilha Portela...

...das trevas renasce o amor..." Já lá vão duas horas e ainda aqui estou, sentado, acordado, ouvindo ainda este samba, indiferente ao imenso cansaço que tenho, incapaz de dormir. Os 4 dias sem parar, de bloco em bloco, com cansaço a mais e sono a menos, não superam a emoção que me mantém acordado. Foi apenas meia hora de samba no maior palco do planeta, mas senti-me efectivamente uma estrela brilhando lá no alto. Também porque desfilei na escola com o meu nome, repetido e cantado à exaustão durante aquela meia hora que me soube a cinco minutos. Entrei e o meu nome ecoava, cantado nos corações dos muitos que vibravam com a bateria que retumbava loucamente, com as alegorias dançando nos pés das mais belas pessoas do Rio, com as alas que como a minha dançavam correndo ou corriam dançando. Apenas me lembro de entrar na avenida e ver uma luz imensa, sorrisos, acenos perdidos no meio da alegria contagiante que descia da bancada. O som ecoando, ganhei asas e voei por ali fora, esquecendo-me quem era, sentindo-me livre como uma estrela cadente ou cometa que cruza os céus. A Portela brilhou, eu não tanto quanto ela, mas por momentos fui também essa estrela que desceu a avenida.




Foto: Erika Tambke



Rio de Janeiro, Brasil, Março 2009

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Ônibus

Acordo suado, empapado, com a boca seca e todo o corpo dormente, quase não sentindo nada da cintura para baixo. As pernas inchadas são o reflexo de muitas horas semi-sentado, enquanto percorro mais kilómetros de uma estrada sem fim, a caminho do Sul, do Carnaval desta vez. O autocarro dorme, roncando profundamente, talvez inebriado neste fedor baço que enche pelo menos a parte de trás, onde me encontro. Ainda assim o ronco do motor que sinto trabalhar debaixo de mim não é suficientemente alto para abafar o que sai de dentro desta metade de gente que ocupa o assento ao meu lado. Enrolado como um bebé, este quarto-de-dose consegue dormir sem parar há horas, confortavelmente deitado onde eu mal me sento. Um misto de ódio e vontade de ser pequenino invadem a minha pessoa. O impulso de o acordar por maldade não passa da intenção e a vontade de o atirar pela janela esbarra na inexistência da mais pequena abertura, por onde ele decerto caberia. Resolvo antes beber um pouco de água e deitar-me sobre o outro lado das minhas nádegas. Decerto existirá uma posição mais confortável. Pronto. Agora só falta ignorar o odor nauseabundo e a sopa que empapa a minha roupa para deixar o cansaço vencer o nojo que sinto da minha pessoa e voltar aos braços de Morfeu. Imagino-me um qualquer marinheiro da nau de Cabral, essa que chegou ao porto de onde saí há horas, seguro de que o que me espera ao fim da jornada compensará o desconforto da infindável viagem. Ao menos nesta nau o escorbuto fica-se pelo odor nefasto a podre e os ratos dormem enrolados, roncando como bebés...

BR101 algures entre Porto Seguro e o Rio de Janeiro, Brasil, Fevereiro 2009