terça-feira, 31 de março de 2009

Terremoto

O meu prato demasiado cheio de uma farta Moqueca começou a vibrar. De leve ao começo, aumentando de intensidade aos poucos, com a trepidação que desce a rua lá fora, entrando aos poucos pelas janelas, chão, paredes. O meu coração começa ele também a bater mais rápido, cada vez mais, acompanhando o ritmo que toma conta de mim, que aumenta de intensidade sem parar com o terremoto que se aproxima na batida louca dos tambores. Estou quase surdo. O coração disparado já não mora dentro de mim, antes vai por aí sem destino, acompanhando a batida que entrou nele. O terremoto já não está lá fora mas dentro de mim, apenas ouço o Olodum e levito sobre mim mesmo. Já não estou na mesa e a Moqueca não é mais que um colorido ponto que se perde lá em baixo, numa das ruas desta Salvador que percorro voando nas asas deste ritmo de outro mundo. Voo e vejo o céu azul reflectido nas águas da baía que abraça esta cidade, as suas ruas cheias de cor, as baianas nas esquinas a vender acarajé, rodas de capoeira, gente sem fim que enche o Pelourinho. Vejo barcos que chegam, um negreiro que vem de África, a abarrotar de escravos, perdidos, arrancados de si mesmos, de suas raízes, com um olhar misto de medo e raiva. São levados para o mercado, acorrentados, maltratados, vendidos, esforçados mais do que permite a força humana... Mas resistem, vencem, têm África dentro de si, a força e a vontade de viver, o ritmo que lhes dá vida, que dá vida a esta cidade, a este país, hoje como ontem, dando vida a este terremoto que vivo ao lado deste prato de Moqueca que me fita indiferente, arrefecendo, alheio a este ritmo louco, a este ritmo que é Salvador. Os tambores já só se ouvem ao longe mas ainda aqui estão. É o Olodum que passou mas quis ficar dentro de mim.

Salvador, Brasil, Fevereiro 2009