domingo, 15 de fevereiro de 2009

Depois de Jeri...

Areia, estrada, solavancos, mais estrada, muita, demasiada. Eventuais paragens, sono solto, olhares cruzados, mais estrada. Uma mudança de planos, uma viagem atribulada para tão somente seguir viagem com quem não quis deixar pra trás, uma noite meia vivida meia sonhada, um despertar repentino, um olhar e um beijo de até já... Um forte dos Reis Magos, imagem única dessa Natal por onde voei rápido para seguir de novo, pela estrada que me leva para Sul. Olinda, entra igreja, sai igreja, carnaval vai, ou nunca mais vem... Dias que correm, um mercado vivo que é Recife a caminho de mais Sul, mais estrada, muita, lenta, devagar, devagarinho, ao ritmo de um olho que se fecha, depois do outro, com calma, sem pressas, sem a pressa de chegar porque também não houve pressa de partir...

Salvador, Brasil, Fevereiro 2009

Simplesmente Jeri...

Era uma vez uma baía... Não! Era uma vez uma terra mágica, encantada... Também não... É difícil começar, falar, descrever, escrever acerca deste lugar. E por muitas razões... A óbvia: trata-se de uma praia linda, plantada numa baía de águas azuis e dunas que se perdem e entrelaçam umas nas outras. Num dos extremos um coqueiral esconde as casas deste lugar mágico, onde o tempo se perde, passa devagarzinho, sem pressas, ao embalo da rede, do vento, do ondular das dunas, do olhar que se dilui no sol ou na lua que põe nas águas, do pensamento que vem e vai. Um pequeno paraíso que nem palavras nem fotos podem descrever na perfeição, porque mais que tudo é um lugar para ser vivido, experimentado, conhecido. Mas para mim Jeri é difícil de descrever acima de tudo porque não creio ter a capacidade de explicar em palavras tudo o que lá vivi, e também por ter medo e consciência de que essa descrição, por muito pessoal, possa empolar expectativas alheias acerca deste lugar. E a última coisa que quero fazer é frustrar visitas futuras de quem me possa ler e querer viver Jericoacoara, ou Jeri, como devo tratar este local, com o carinho que se trata um velho amigo.
Cheguei cansado, alheado das coisas, mais pela obra do cansaço mental que do físico. Encontrei olhos curiosos, braços que se estenderam, sorrisos que se foram abrindo à velocidade que eu próprio o fiz e que a amizade foi crescendo. Comida e caipirinha temperaram esta receita ancestral de que me tinha esquecido, da qual eu teimava em me esquecer... As amizades que fiz em Jeri estarão para sempre na minha mente e coração, fruto da enorme saudade que é Jeri. Em Jeri tentei várias vezes explicar esta Portuguesa palavra, mas saudade é simplesmente Jeri, este sentimento de querer estar, tendo vivido, na certeza de que sempre estaremos lá, naquele lugar, com aquelas pessoas, mesmo nunca mais lá voltando. É esta certeza de para sempre estar num lugar mágico e sorrir de tão somente lembrar, com um leve toque da tristeza de não poder lá ficar para sempre.
É assim Jeri, ou pelo menos foi assim para mim, este turbilhão de sentimentos polvilhado por caipirinhas, frenéticas rodas de capoeira, momentos mágicos vendo da duna a lua que desce, intermináveis horas encontrando-me comigo mesmo e com um dos mais fantásticos grupo de pessoas que tive o prazer de me cruzar. Por tudo isto Jeri é e para sempre será, para mim, simplesmente Jeri.

Algures no Nordeste, Brasil, Fevereiro 2009





Montanha Russa


Um sobe e desce constante leva-me pela costa Nordeste abaixo, onde dunas e lagoas fazem a paisagem que o 4x4 navega como uma nau antiga, qual incessante montanha russa de areia e pedras. A gente que me acompanha não viaja em passeio como eu, o único turista, mas faz esta viagem uma e outra vez, viagem que é parte constante das suas vidas. Talvez porque o destino os plantou nesta linda terra de ninguém onde as estradas ficaram esquecidas, talvez apenas porque não sabem viver longe da beleza que os rodeia. Paulino Neves, onde uma enorme duna é o grande monumento, é o destino, ou primeira paragem de uma jornada que apenas começa. De lá para diante a montanha russa fica mais agreste, incómoda, apenas atordoada pelo sono de quem despertou a meio da noite para seguir no único transporte do dia. Uma, duas, três localidades, agora já a estrada, depois Camocim, onde paro para dormir antes de seguir novamente em 4x4 pela areia da praia até Jericoacoara, o meu objectivo. Já corri muitas estradas e caminhos. Este foi um dos mais difíceis e agrestes, apenas suplantado por uma Angolana estrada onde 30 anos de guerra ainda conseguiram deixar algum alcatrão entre os buracos. Mas solavancos aparte, este caminho nordestino do Brasil foi, é, será também um dos mais bonitos que tive o prazer de percorrer.

Jericoacoara, Brasil, Fevereiro 2009








Solavanco, ou a condição de ser humano



Estou em São Luis mas não queria aqui estar. Pela primeira vez nesta viagem queria estar longe de onde estou. Este enorme "Bairro Alto" solarengo, qual Lisboa dos dias de Verão, não é capaz de me matar a vontade de estar noutras paragens. A paragem aqui foi pensada mas acabou por ser maior, forçada, num momento em que o corpo cedeu e a mente lhe segui as pisadas para me fazer questionar, quase desistir, num momento de fraqueza, humano e natural. Se ao menos pudesse parar por um dia, apanhar o barco para a outra margem e descer o país rumo ao Sul... Mas na outra margem não há Cacilhas, há uma Alcântara que é outra, e não há estrada ou comboio para me levar. Estaciono antes no 'Antigamente' de onde escrevo enquanto vejo quem passa, pensando e contemplando o que fazer. A gente que passa alheia aos meus problemas e questões segue a sua vida, tal como eu devo seguir a minha, rumo a outras paragens, seguindo o sonho já que outros não são agora possíveis e desistir deste seria uma estupidez sem fim...
Sigo, sem saber bem como nem porquê, mas sigo! Não vou baixar os braços assim tão facilmente deixando para trás um sonho que o instinto me dita e que a sorte me permite realizar a cada dia. Mais difícil que o pensado, mais profundo que o planeado, mais audaz que o sonhado, demasiado importante para terminar assim. Por mais nobres razões o faria, por elas o farei quem sabe, mas sem elas desistir não mais seria que desistir da vida e isso não é para mim. Antes sigo, adiante há mais caminho por descobrir...

São Luis, Brasil, Fevereiro 2009

Um dia na Amazónia

Nasce o dia com o barco que ruge Rio Tapajós acima, rumo à floresta que me espera. O céu aqui é mais baixo, muito próximo ao imenso espelho de água que o reflecte. Para trás vai ficando uma Alter-do-Chão onde não os cavalos mas as águas cristalinas e as areias finas fazem os postais. Em frente de mim a razão da minha vinda a estas paragens, esta floresta imensa que se abre à minha frente. Mais adiante já são os meus passos que seguem os dos guias que habilmente descortinam a trilha estreita, me explicam os gritos das aves, me desvendam os mistérios de algumas das plantas que para além de preencher este pulmão vivo também curam dores de cabeça, isolam canoas ou ajudam a emagrecer. Muitos passos e 3 horas depois chegamos à casa da "vovó" de todas as árvores, uma parede imensa à qual a minha máquina não soube ou pôde dar a devida perspectiva e da qual não pude vislumbrar a copa. Na volta a fauna que se fez ouvir sem nunca aparecer resolveu mostrar que não estávamos sós, quando uma venenosa cobra jararaca cruzou o nosso caminho para nos lembrar que não estamos num qualquer parque de diversões mas na maior floresta do planeta, um mundo de maravilhosas surpresas onde somos apenas mais um, um visitante na casa dos outros. Sinto-me cansado e muito pequenino, apenas um mergulho nestas águas me trás de volta à realidade. Mas nem isso me faz esquecer a minha posição relativa neste Mundo, o maior ensinamento que mergulhar nesta floresta me deu.

Alter-do-Chão, Brasil, Janeiro 2009


terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O bazar flutuante


Subo o Amazonas. Deixei Belém há alguns minutos e vejo ao longe a cidade que adormece, reflectindo o sol que se põe no ocidente, por entre as nuvens e a água deste rio que flui incansavelmente para o mar, nem ele sabe bem porquê. Subo esta massa imensa de água numa espécie de bazar onde cheiros e gente se acotovelam, onde todos lutam para conseguir um lugar onde estender a sua rede, aquele que será o seu refúgio durante 3, 5, 8, 10 dias, dependendo do destino onde a vida os leva. Viver neste barco é como viver num qualquer bazar flutuante onde redes, mantas, toalhas e roupas caem dependuradas do tecto, pendendo sobre malas, sacos, caixas e toda a espécie de pertences que se amontoam. Este bazar vivo navega pela noite escondendo nas margens escuras a floresta e suas gentes que a manhã irá revelar. Com o sol desperta o burburinho no bazar que acorda. Os tecidos ganham vida e destes casulos sai gente sem asas mas com sonhos e que fitam o espectáculo que as margens apresentam. Árvores e mais árvores, de longe em longe uma casa, uma aldeia, e os indígenas locais saem de encontro a nós. Uns para fazer adeus, outros para receber comida, outros, quais piratas, abordam o barco para subir e vender comida ou para apenas apanhar boleia rio acima. Cá dentro as gentes correm a ver quem chega, quebrando a monotonia de uma viagem que se repete a cada minuto. O espaço é pouco, as filas para tudo imensas, a paciência e o sorriso são os companheiros necessários e constantes, imprescindíveis nesta jornada épica que para muitos é uma necessidade e para poucos uma aventura que não mais se repetirá. Em comum apenas o sonho, porque subir este rio é e sempre será um sonho.






















Lô e Janderson

Um sorriso sem igual é a imagem mais bonita de toda esta jornada. Minto! Dois sorrisos. Dos meus vizinhos favoritos. Lô e Janderson. Irmãos, primos, amigos, que importa... A idade também não perguntei, não sei se por estupidez ou porque não importa. Receberam-me naquele barco com um sorriso, talvez respondendo ao meu que não vi. A toda a hora lá estavam, com a simplicidade que a sua idade em redor dos 10/12 anos e a sua origem humilde lhes dá. Sorrindo apesar das tantas dificuldades de viagem, de tantos irmão para cuidar. Sorrindo de tudo, vivendo o sonho de mudar de cidade, com toda a excitação da sua muito provável primeira grande viagem. Mesmo que tivesse a tentação de reclamar da falta de conforto, das filas para comer ou para a casa-de-banho, dos cheiros, do calor, dos encontrões que não me deixaram dormir, de tantas coisas, mesmo que essa tentação aparecesse não poderia faze-lo porque o seu sorriso sempre esteve lá, a lembrar-me da relatividade das coisas e de como tudo pode ser uma benção ou um martírio, apenas dependendo de nós, de como vemos as coisas. E os olhos deles tudo vêem como uma descoberta, como uma desculpa para sorrir...
Para onde olhas tu Lô, para onde? Que pensamentos, que ideias, que sonhos e ambições, o que está na tua cabeça enquanto fitas o horizonte? Que futuro terá o teu lindo sorriso daqui a 5, 10, 15 anos? Como será a tua vida, que futuro te reserva este teu país no qual nasceste na "metade" errada, naquela em que as dificuldades são muito maiores que as oportunidades? Mas que importa afinal, com o teu sorriso serás sempre mais feliz que muitos que tudo têm. A viagem terminou para mim e vocês seguiram, mas o vosso sorriso para sempre estará na minha memória, para me lembrar como tudo é mais simples com um sorriso aberto nos lábios, simplesmente um sorriso.

Amazónia, Brasil, Janeiro 2009

Mesa de cozinha

Entrei naquela cozinha e senti que estava a re-encontrar velhos amigos há muito perdidos. Um sorriso, uma cerveja, uma piada sobre Portugueses, outra cerveja, uma música que se canta e mais uma 'geladinha' que desce, um petisco que se cozinha, outra cerveja que se bebe. Risadas imensas, muita música, muita conversa, demasiada comida e muita cerveja para selar uma amizade instantânea entre um Português e um grupo de Brasileiros de todos os cantos do país, todos de passagem por Belém do Pará. Acabei por não ver muito da cidade, mas não me arrependo nem um minuto das longas horas passadas ao redor daquela mesa de cozinha onde aprendi mais que se tivesse apenas vagueado pelas ruas estreitas e confusas de uma cidade que o tempo e a fortuna esqueceram. A única coisa não esquecida em Belém é a arte de bem acolher quem chega. Nem mesmo o primeiro assalto da minha viagem me vai fazer esquecer como me senti bem naquela mesa de cozinha.

Belém do Pará, Brasil, Janeiro 2009

"pit-stop"

Quis a vontade que o primeiro destino fosse o Brasil. Rio de Janeiro. Que melhor maneira de começar senão por um dos mais belos países do Mundo, pela cidade maravilhosa, rainha do Carnaval, do Samba, das belezas naturais e humanas, de todos os contrastes? Mas quis a sorte que o Rio não mais fosse que uma 'pit-stop' a caminho do Norte, após algumas horas em busca da garota de Ipanema que Jobim cantou. Quis a sorte, mas a vontade impera que volte, em breve.

Rio de Janeiro, Brasil, Janeiro 2009

Começo

Como começa uma volta ao Mundo? Provavelmente num qualquer aeroporto, cheio, demasiado cheio de gente que se atropela numa espécie de correria louca para ir a lado nenhum. Gente que vai ou que vem, começa ou termina uma jornada qualquer, muita que simplesmente nem sabe ao que vem ou ao que foi. Enfim, gente...
Sempre gostei de observar as pessoas que me rodeiam nos aeroportos. Bom, transportes em geral, mas aeroportos em especial, porque apesar de algo elitista acaba por ser aquele espaço onde todos se encontram. Desde o homem ou mulher de negócios, que chega a correr, sempre ao telefone, a ler, por detrás do ecrã do portátil, sempre ocupado, como se cada minuto daquela hora fosse mais importante que os da que se segue. Desde o imigrante acabado de aterrar, com um olhar pasmo de quem ainda não acredita que está e ainda a relembrar a ladainha que decorou para passar a fronteira, apesar de já a ter passado, mas ainda com a memória das infindáveis horas a praticar respostas a perguntas sem nexo que apenas se destinam a tentar evitar os sonhos dos outros. Seja como for, indesejáveis ou não, todos chegam com o olhar de pasmo e com aquele brilho nos olhos que apenas quem vive um sonho tem. Há também os que vão, com o olhar cansado de quem viveu o sonho mas sente saudade. Ou daqueles que vão prestar uma última homenagem aos que partiram sem avisar e não puderam esperar o seu regresso. Os que apenas voltam depois de viver o sonho que afinal não era o seu, regressando a si mesmos. Mas há muitos mais, há o turista, com a sua roupa tantas vezes ridícula de quem não quer saber de nada que não seja daquele momento de relaxamento. A criança que olha pasma, prestes a voar como os pássaros pela primeira vez. Os profissionais com demasiadas horas de voo a oferecer café e amendoins espelhadas naqueles olhos de cansaço imenso, ou dos que nunca sequer chegam a voar, apesar do cansaço ser o mesmo.
Enfim, gente, muita, por todos os lados. Os que vão porque têm de ser e os que deram tudo para poder ir. Os que vão mas queriam ficar, os que chegam sem nunca querer ter vindo. Os que estão de passagem e nunca nem sequer queriam parar aqui. Mas uma coisa existe de comum entre toda esta gente que se acotovela para fazer um check-in, se despe para passar na segurança, se aborrece à espera ou se distrai a olhar lojas com coisas que nunca quiseram comprar. Todos estão de passagem, mais ou menos tempo, de corrida ou com a calma que só o tempo ou a idade nos dá. Todos de passagem, entre uma origem e um destino, todos de viagem, na viagem sem destino sem dar por isso.
Uma volta ao Mundo começa provavelmente num aeroporto qualquer, ou muito provavelmente começa muito antes, no momento em que pela primeira vez os olhos brilharam ao passar uma fronteira, ao ouvir uma pessoa que fala algo que não se entende, mas com um sorriso de curiosidade. Começa no momento em que compreendemos o quão relativa é a nossa posição neste Mundo, o quanto temos para aprender com gente estranha, lugares distintos, cheiros e cores diversos. A minha começou assim, ao cruzar uma fronteira num dia qualquer do qual já não me lembro, e não mais parou. E assim nasceu um sonho, o sonho de correr o Mundo, um sonho de criança que se faz adulto agora, muitos anos depois, num qualquer aeroporto, com o destino Oeste na mente, percorrendo o planeta como Fernão o fez mas não em busca do caminho das especiarias por Ocidente, apenas do caminho de volta a Portugal, por onde a vontade e a sorte me levarem.

Londres, Reino Unido, Novembro 2008